sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Pra ser sincero


Há meses eu alterara o percurso que me era comum para chegar ao trabalho: saía meia hora antes do que me era necessário para desviar algumas quadras, encontrar você disfarçando a cara de sono e tomar café da manhã na sua padaria preferida. Nunca me fora sacrifício abrir os olhos ao primeiro sinal do alarme - que passou a tocar uma de suas músicas favoritas - e vê-lo pela manhã era motivo suficiente para sorrir durante todo o dia. Você me fez mudar a rotina, e eu lhe era grato por isso todas as noites antes de fechar os olhos, ainda que tenhamos demorado alguns dias para dividir a mesma mesa na manhã seguinte.

Lembro da primeira vez que o encontrei na fila do caixa e de como cobrir os dois reais que faltavam do seu café transformou um agradecimento em amor à primeira vista. Eu retornava para casa naquela manhã de domingo, depois de uma noitada na casa de amigos, e a fome me obrigou a entrar naquela padaria desconhecida. Você pediu desculpas pelo incômodo, disse que tomava café ali todos os dias, mas passara alguns dias viajando e não sabia do aumento no preço dos produtos. Agradeceu pela gentileza e fez de um bom dia motivo suficiente para, a partir daquele momento, eu antecipar o alarme nos dias seguintes e te admirar todas as manhãs antes de bater ponto na firma.

Num daqueles dias você me reconheceu, insistiu que eu deixasse meu suco misto por sua conta e chamou para lhe fazer companhia na sua mesa preferida, que ficava no canto mais isolado do lugar. Era sexta-feira e eu o convidei para jantar depois do expediente. Você agradeceu pelo convite, mas tinha compromisso e, se estivesse interessado, eu até poderia lhe acompanhar no happy hour semanal com alguns amigos da época da faculdade. Sorri sem graça, mas só fui conhecer seus amigos meses depois daquele dia. Combinamos, então, irmos juntos à abertura de uma exposição artística na manhã do dia seguinte.

Naquele sábado eu soube da sua paixão pelas artes, conheci seu local preferido no parque e tivemos o que considero nosso primeiro encontro. Você disse que eu tinha um andar engraçado, encantou-se pelo meu conhecimento histórico sobre a origem daquela estátua inacabada do centro da cidade e, após trocarmos preferências musicais, foi responsável pela primeira vez em que alterei a trilha sonora que me fazia abrir os olhos todas as manhãs. Você me fez mudar a rotina e nem tinha conhecimento disso porque eu me conformava em ter apenas sua educação. E sua música preferida me fazendo acordar com alegria todos os dias.

Com o passar das semanas, nossos encontros diários foram nos tornando cada vez mais próximos, mais íntimos e eu precisei pedir uns dias de folga do trabalho para passar um tempo longe de você, porque talvez assim eu saísse da zona confortável em que aquela amizade estava me colocando. Eu queria ser mais que um amigo, afinal. Mas eu voltei antes da folga terminar, lembra? É que eu acabei percebendo que aquela zona confortável não era de todo ruim. Ruim era não te ver sorrir, não ouvir sua voz pela manhã ou à tarde, pelo telefone, como vínhamos nos comunicando regularmente.

Tinha três meses do nosso primeiro encontro e quando eu te vi do lado de fora da sala de desembarque, meu coração acelerou e eu dei o que considero a respirada mais profunda de toda a minha vida, porque precisava que ele se contentasse com o fato de que minha boca não poderia ultrapassar o limite dos seus lábios. Mas foi difícil conter o nervosismo ao te ver depois daqueles cinco dias que pareceram uma eternidade e, ao nos cumprimentarmos, acabamos errando as bochechas um do outro e seria aquela a única lembrança que eu guardaria de um beijo seu: sem ensaio, sem querer, sem paixão.

Você abaixou o rosto, envergonhado, e pediu desculpas. Eu peguei sua mão, disse que não tinha problemas e que ainda faltava um abraço naquela recepção. Você levantou o rosto, tirou do bolso meu chocolate preferido e, enquanto colocava-o no bolso lateral da minha mochila, deu-me as boas vindas sem parar de sorrir. Abrimos os braços quase que ao mesmo tempo e, depois de entrelaça-los, ficamos ali cerca de quinze a vinte segundos em silêncio até você dizer baixinho que estava com saudades e eu sentir a pele arrepiar com sua respiração. Perdi o controle, desfiz nosso abraço, levei as mãos ao seu rosto e deixei que minha razão fosse dominada pela emoção.

Não é difícil descrever como aconteceu. Você se entregou antes daquele susto tardio. Eu baixei a cabeça, envergonhado, e pedi desculpas. Você pegou minha mão, disse que não tinha problemas e que podíamos continuar abraçados enquanto selávamos aquela recepção com um beijo. Mas é difícil descrever o que eu senti. Não era a mesma felicidade de te encontrar, a mesma alegria ao acordar com o toque da sua música preferida ou o mesmo alívio de te ouvir falar. Era mais que isso, era mais que tudo isso, era diferente de tudo o que você, sem saber, já tinha me feito sentir. Se há mesmo o tal Paraíso que acreditamos, deve ser aquela a sensação de estar lá. Eu estava em paz, é o mais perto de uma definição que eu consigo chegar.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Ninguém sabe

 
 
Por trás da cena desagradável existia mais que a maioria imaginava: o assassino do gato havia sido nada mais nada menos que a própria Morte, que estava mais mal humorada que de costume naquele dia. Ela poderia ter esperado ele cruzar toda a rua ou nem deixá-lo ter iniciado a travessia, quem sabe até esperar que ele dormisse, afinal quantas outras vezes uns minutinhos a mais ou a menos tinham feito toda a diferença - e era bonito, elegante e educado o gato. Mas naquele dia não; naquele dia ela fez questão de cumprir com sua obrigação no horário exato, às quinze horas, trinta minutos e dezesseis segundos. Estava mal humorada, ninguém sabia o por quê.

Ninguém soube o por quê, também, de aquele motorista estar em velocidade tão acelerada e completamente indiferente à mancha de sangue que se formou ao redor daquele bicho morto. Porque, na verdade, ninguém tinha dado conta do que só o motorista, aos prantos, estava se perguntando: por quê ninguém teve coragem de tirar esse gato morto do meio da rua? Porque ele não o tinha feito antes? Porque a Morte, mal humorada, tinha dessas atitudes pra incomodar a Vida, que não se enxergava como corpo e por isso se valia apenas da sua existência - e isso incomodava a Morte porque, pra ela não havia nada pior que um animal morrer para outro ser humano nascer.

A Vida, quando vinha ao mundo, tinha a tudo como novidade, ia ainda aprender a viver. Ela vinha sem saber-se humana, bicho ou planta e o que quer que fosse a ela não interessava, porque o objetivo da Vida é nada mais que viver. A Morte aqui chegara com vida e foi a primeira a morrer. Ninguém sabe o que ela em vida foi e como a Vida não queria nada mais que viver, às quinze horas, trinta minutos e dezesseis segundos daquele mesmo dia o primeiro filho daquele motorista apressado respirou pela primeira vez. A Morte sempre sabe quando a Vida vem e, diferentemente da Vida, sabe antes que ela chegue quem irá morrer.
 
Era um bom moço aquele novo pai, mas a Morte era piedosa com recém-nascidos e marcava com culpa, decepção ou qualquer coisa que menos valesse alguém de perto só pra incomodar a Vida - que raramente conseguia entender o por quê de, vez ou outra, alguma coisa acontecer ao seu redor e conseguir tirar-lhe a vontade de viver. Era a Morte, recém assassina de um outro ser que não humano e disposta a transformar sua dor num espetáculo traumatizante. Porque a esperança é um atributo inerente à Vida e entre os atributos da morte não está o viver - pra ela sinônimo de esperança. A Morte há muito jaz num tempo de onde é impossível renascer.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Leveza

 
Eu quero amor,
Eu quero tudo o que for bem colorido, tudo o que for leve
Não me atrapalhe, eu tenho um objetivo
E a vida é breve...
Alice Caymmi

Eu sinto dor todos os dias. Não tem dia sim ou dia não, é sempre dia de doer alguma coisa ainda mal resolvida no meu interior: um telefonema que faltou; um encontro que ficou pra dia outro que nem como noite vingou; um atraso no serviço que a cada dia mais atrasado fica; uma pisada na bola, na jaca ou no meu próprio pé - quem já o fez sabe da dor que é. Então eu sei como é doer do lado de dentro - embora cada um viva isso em sua própria intensidade - e jamais faria pouco da dor interna de outro alguém.

Eu sei das coisas que senti e o quão ínfimos podem parecer a outros olhos os motivos para ter me sentido dessa ou daquela maneira. E, com o tempo, aprendi a não ligar pra isso, porque acabei percebendo que todos tem seus motivos ínfimos, apenas não os exergam assim. Quem tem medo de escuro fazendo chacota com quem tem medo de subir de elevador, e vice-versa. Assim foi o último ano, regado a momentos desnecessários de descrédito no sentimento alheio. Pouco mais de vinte e sete primaveras e eu vi o relógio da vida dar sinais de bateria fraca.

Lembrei dos primeiros dias de janeiro último e do quanto aquela viagem em família tinha sido capaz de mudar o modo como eu vinha enxergando o mundo nos últimos tempos. Levei nas malas todo aquele querer que eu vinha cantando desde o dia primeiro do ano - eu quero amor, eu quero tudo o que for bem colorido, tudo o que for leve; não me atrapalhe, eu tenho um objetivo e a vida é breve - e era Caymmi a Alice que cantava e era pra Bahia de Caymmi que eu estava indo. Muito axé com certeza.

Não foi. E, de uns meses pra cá, a dor que vinha casualmente começou a ser rotina diária, porque telefones, encontros, atrasos e topadas com o pé passaram a ser também rotina diária. Se não era um, era outro e nunca faltava opção pra doer, porque meu querer, minhas vontades e meu bem estar eram desculpas que não justificavam meu comportamento. Talvez tenha sido assim vez ou outra, mas só eu sei do peso que carreguei nas costas todas as vezes em que passei pela porta do meu quarto em direção à rua quando tudo o que eu queria era ficar.

Leve, tudo o que eu queria ficar desde que aquele primeiro de janeiro passara e no quesito leveza de certo que 2015 não obteve nota máxima. Fiquei triste e decepcionado, claro. Beirando os trinta anos e incapaz de ser firme ao impor minhas vontades - aí sim arrumando desculpas que não justificavam meu comportamento, mas eram justificadas pelo descrédito à minha realidade e que eu provavelmente nunca tentarei fazê-la melhor ou pior que a de outra pessoa. Ela só é diferente e, depois de um tempo eu consegui perceber, aquela dor era porque eu estava fazendo diferente também.

Eu sinto dor todos os dias. Não tem dia sim ou dia não, é sempre dia de doer alguma coisa ainda mal resolvida no meu interior, mas do mesmo jeito que a dor se fez rotina, a leveza também passou a me visitar diariamente. Doía aqui, doía ali, mas quantos outros males não vem pro nosso bem? É egoísta, mas outra coisa não haveria de ser: antes de me sentir leve, achei que a dor fosse culpa, resultante de algumas atitudes com doses de egoísmo. Talvez tenha sido assim vez ou outra também, mas só eu sei de quão leve tenho me sentido desde então.

Logo estarei de férias e pretendo viver essa folga de alguns dias um pouco longe daqui. Não cruzarei fronteira de estado ou sequer município, mas os quilômetros distante são suficientes pra impossibilitar uma conexão com a internet e, por consequência, a falta de contato com muitas das coisas que atravancam a passagem de outras mais leves, como navegar pelo Facebook e me perder completamente daquilo que eu estava decidido a fazer. Meu desejo era que num desses dias a chuva se fizesse presente, mas, como tantos outros, esse querer não é poder. Não depende de mim.

Com chuva ou sem chuva, uma coisa é certa: eu quero amor, eu quero tudo o que for bem colorido, tudo o que for leve. Ainda não posso dizer com absoluta certeza qual o meu objetivo, mas saber isso me é indiferente quando ainda estou em busca e nem sei se um dia vou encontrá-lo. Isso depende de mim e do quão leve eu vou estar para aceitá-lo quando chegar, então é primordial que a leveza se estenda ainda por um bom tempo. Eu continuo sentindo dor todos dias, por fazer diferente de tantos outros dias. Mas quanto mais leve eu fico, menos dor eu sinto. Eu quero tudo que for leve e mais ainda me sentir assim.

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Rai

 

Estávamos eu e um amigo conversando sobre onde tem sucesso aqueles que procuram a felicidade, quando um de seus argumentos me fez recordar algo que corroborova com a afirmação: ao declarar-se humilde, vai-se embora a humildade. Acho que podemos, sim, reconhecê-la em nós - tal qual deveríamos reconhecer nossos talentos, aptidões e capacidades, o que não significa que devemos fazer dela tentativa de autopromoção.

Raimunda é o nome dela, uma mulher que trabalhava com os serviços gerais do meu local de trabalho e com quem não tinha um contato tão frequente como com tantos outros terceirizados com quem divido o horário de expediente. Até aquele dia eu nem sabia o seu nome, na verdade. Nossos encontros do dia-a-dia eram os cumprimentos rotineiros - bom dia, boa tarde - e algumas poucas coversas que não exigiam nos chamarmos pelo nome.

Eu estava a poucos meses do lançamento do meu livro e aquele período de alguns meses que o antecedeu não foi dos melhores. Nem era estima baixa, era falta dela mesmo. Meu mundo tinha virado do avesso e naquele dia exatamente eu me encontrava completamente descrente de qualquer valor, fosse do mundo lá fora, fosse do mundo aqui dentro. A Raimunda apareceu num dos meus intervalos de fumante, eu sentado na escada e ela rumando pro térreo, já fim de expediente.

- Eu gosto tanto de ti, sabia?
- Oi? - eu sorri abobalhado quando ela deu meia volta alguns degraus depois.
- Eu tava até falando pra tua irmã um dia desses, que tu ficou de férias, né?
- Agora? Não, eu tirei férias em janeiro... - era março.
- Pois é, aí eu encontrei tua irmã no corredor - ela continuou, enquanto olhava pro papel com que brincava de dobrar com as mãos, aparentemente acanhada pelo que estava falando - e perguntei se tu tinha saído daqui, porque fazia tempo que eu não te via e senti sua falta.
- Mas gente - e eu queria um papel agora pra dobrar nos dedos enquanto sentia minhas bochechas corarem.
- É, porque... tu trata a gente como igual, sabe? Eu acho lindo a sua humildade, fala com todo mundo...

Não consigo me recordar de outro momento na vida em que aquela palavra me atingiu o peito com tanta intensidade. Aquele momento durou cerca de alguns segundos, porque logo me veio a culpa de, depois de saber-se tão bem visto aos olhos de outra pessoa, eu precisar olhar para o crachá que ela carregava pra saber o seu nome. Raimunda, eu li. Rai, foi assim que eu passei a chamá-la fosse independentemente da efemeridade de nossos encontros.

No entanto, ainda que por tão pouco tempo, eu pude ver, com o valor do mundo lá fora, que ainda tinham alguns trocados de valor no mundo aqui dentro. Por reconhecer nos outros a humildade eu sabia reconhecer em mim sua existência, mas não consigo recordar de algum momento anterior àquele - e creio que não haverá posterior - em que eu pude sentir verdadeiramente o que era ser humilde, não por sê-lo, mas porque aquelas palavras conseguiram me fazer sentir o que eu senti.

Enquanto escrevo me pergunto por onde andará a Rai, que há muitos meses não vejo. E por onde andará a humildade que em mim ela exergou enquanto escrevo esse texto. Talvez seja ela como a felicidade, um estado de espírito e não condição de vida: não se é humilde, se está humilde; afinal declarar-se assim não anula a existência da humildade em momentos outros, seja no passado, seja no futuro - sem falsa modéstia, claro.

Por poucos seguntos - entre as palavras dela, um sorriso acanhado e a culpa de não saber o seu nome - eu não lhe disse que era exagero ou concordei a me gabar, e tudo o que eu consegui dizer foi que eu não sabia o que dizer além de muito obrigado. Nos olhos surgiram algumas lágrimas, fruto do coração acelerado pego de surpresa e sem qualquer pretensão. Hoje, tantos meses depois, veio em mim essa lembrança que, no fim das contas, é também uma lição.

Há muito passei da fase de não me importar com o que os outros pensam de mim. Não que eu me importe, mas antes eu sempre me importava. Hoje o às vezes acompanha a importância e vez ou outra eu não ligo mesmo se não curtiram meu bigode ou se incomodaram com meu macacão. O fato é que, independentemente da importância que você dá ou não para aquilo que dizem sobre você, existem algumas coisas que ninguém além dos outros vai poder dizer.

Tem quase um ano daquele encontro com a Raimunda. Relembrá-lo me fez enxergar o quanto, pelo menos até ali, eu segui meu caminho pela direção certa, independentemente dos desvios que fiz. Foi como voltar no tempo pra acalmar o coração e perceber o quanto aquilo que ela disse conseguiu fazer brotar um sorriso quando minh'alma estava tão entristecida. Aqueles poucos segundos que antecederam a culpa trouxeram também um cadinho de felicidade.

Então estávamos eu e um amigo conversando sobre onde tem sucesso aqueles que procuram a tal felicidade e, depois de visitar aquela lembrança - e apesar de corroborar com um de seus argumentos - eu percebi que a Rai não só tinha transformado o meu dia, como deixado pra mim uma lição pra vida toda: não adianta procurar, felicidade se encontra; pode vir de dentro de você, pode ser que outro alguém faça você sentir.

Ninguém pode ser feliz por ninguém. Mas sempre tem alguém que pode fazer você feliz. Não perca a humildade. Ser humilde é semear amor e colher felicidade.

domingo, 24 de janeiro de 2016

Dar um tempo

 

É sempre bom dar um tempo. Ainda que conectado nas redes sociais e de olhos grudados na tela do celular, sempre tem um momento em que você direciona o olhar para o que tem à frente – o celular é o mesmo, mas a moldura quase invisível dele não é aquela com a qual se está acostumado. Pelo menos comigo é assim que acontece nesses momentos de introspecção virtual: a voz de uma cantora de rua, uma árvore cheia de filtros dos sonhos pendurados e até aquele guaraná que você não saboreava há muito tempo se sobressaem na minha atenção e, pasmem!, eu esqueço até de tirar fotos.

E dar um tempo daqui não é só bom como pode servir como uma experiência de vida incrível, porque dá pra conhecer pessoas que, num dia-a-dia normal, não seria possível nem encontrar; os relacionamentos mais íntimos são colocados à prova da intimidade de dividir o período de férias, afinal sair da redoma confortável que é a nossa rotina para envolver-se na rotina calma, atribulada ou divertida de um outro alguém é algo que, momento ou outro, pode causar certo desconforto, o que é comum em qualquer experiência incrível. Assim como a impulsividade.

Pouco mais de dois anos atrás, de férias em São Paulo, numa das minhas saídas em minha própria companhia, estava sentado num bar, em mesa vizinha à de um casal que conversava sobre algo que acontecera tempos antes. Eu não lembro de nomes, motivos ou outros detalhes da conversa – apesar de tê-la ouvido quase toda – mas pedi ao garçom uma caneta e alguns pedaços de papel. “A cabeça que você tem hoje tem a ver com aquele momento”, eu escrevi entre aspas como se fossem elas capazes de levar a mensagem até a mulher que dizia não querer ter vivido um momento do passado.

Estava a um cigarro de ir embora quando levantei e pedi licença aos dois para entregar a ela aquelas pequenas folhas para onde tinha transcrito o que se seguiu àquela frase. Fiquei ali, entre trago e outro, ansioso pela reação após a leitura da última palavra – e ela lia em voz alta para que ele ouvisse.

"Se não tivesse sido assim, você não iria querer mudar o passado. Então, pense bem, foi tão ruim assim? E, se foi, você estaria tão madura e consciente como está hoje? Já ouvi dizer: ‘não existe amor em SP’. Amor é liberdade. É deixar-se livre para viver. Aqui é como gaiola aberta sem fechadura na porta. Porque o importante é viver. E, se você não tivesse vivido, e não tivesse aprendido, aquele momento não seria visto como você vê hoje. ‘Aquele momento’. Sempre tem aquele momento. E, se a gente se arrepende dele, é porque valeu muito à pena que ele fosse assim”.

Ganhei um abraço e um pedido de licença para ir ao banheiro. Ficamos eu e ele sozinhos, e então soube que eles tinham se conhecido naquele dia, ou dias antes, ou sei lá. Na verdade não se faz necessário lembrar quanto tempo eles tinham de relacionamento, porque, tal qual começou, estava prestes a subitamente acabar. Ele viajava de férias após um recente término de namoro, ela viajando à trabalho e permitindo-se sentir a liberdade que era estar longe de um relacionamento que há meses a sufocava. Eram como eu: viam naquela rápida passagem por São Paulo a oportunidade de se despirem completamente do medo, vergonha e receio dos olhares tortos alheios.

Dar um tempo do nosso lugar, por si só, já é uma verdadeira experiência incrível.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

É mágica


Enquanto 2015 encerrava, eu resolvi encerrar junto com ele e deixar para 2016 só o que realmente me fizesse bem. Aos quarenta e cinco do segundo tempo, sem prorrogação, defendi a bola e quis fazer gol a gol, porque a diferença enorme de placar permitia que eu a chutasse sem culpa: era impossível que o saldo positivo se sobressaísse ao negativo, eu só não queria desistir. Além do que, meu desafio era difícil - acertar entre os metros quadrados da trave e não naquele vão sem torcida - mas nem de longe impossível - afinal força eu tinha e o tempo pra bola cruzar todo o campo era suficiente também. 

Naqueles últimos dias de 2015 eu arrisquei o desconhecido sem medo de me perder no mundo novo que abri as portas do meu pra conhecer. Em comum apenas o universo onde há anos tínhamos fincado morada involuntariamente. Até que eu, atrevido como sou - e findando já um ano de muita lição, mas pouca saudade - voluntariamente busquei em minha biblioteca os livros de história e fui lá no outro mundo perguntar se não existia a possibilidade de uma permuta de conhecimentos. Tantos admiráveis e reais mundos novos que eu ainda nem conheço por aí, mal não haveria em arriscar esse e ver quão admiráveis podiam ser sua língua, seu povo, sua cultura, suas histórias. Um mundo novo dificilmente não me encanta. São raras as vezes que minha biblioteca não recebe livros das histórias de outros lugares desse mesmo universo meu. Mas com que frequência os livros que retiro dela não são recebidos nesses mesmos lugares?

Pouco tempo restava e, ainda que fosse possível fazer um último gol, minha derrota era inevitável: eu nunca poderia ganhar aquele jogo aos quarenta e cinco do segundo tempo e não ganhei. Arriscar-se a conhecer mundos novos é arriscar-se também a inexistência do interesse alheio pelo seu. E quem, como eu, tem dificuldade em aceitar algumas de suas próprias histórias geralmente acredita neste último risco. Veio derradeira virada de ano e foi então que 2016 trouxe junto com ele aquelas histórias últimas do ano que findara, o que me fez lembrar do Teatro Mágico e daquela música sobre essas pessoas que, enquanto estiverem do lado de lá, nos mantém orientados do lado de cá - tipo um vizinho do outro lado da rua que te ajuda a levantar - e em parte ela diz: o fim é belo e incerto, depende de como você vê.

Tantos dias já daquele chute último, eis que anunciam em rede mundial que foi gol sim, mas foi gol contra. A defesa foi além do limite da trave e não fosse aquela análise minunciosa teria ficado por aquilo mesmo, gol a mais gol a menos não ia fazer diferença mesmo. Mas fez. A bola atravessou o campo, dançou no ar, foi um gol bonito. E há poucas horas chegou correspondência daquele mundo novo, dizendo que tinham histórias outras de lá ainda para serem contadas e talvez no mundo meu também tivesse e seria bom que outros encontros daquele houvessem. A cena repete, a cena se inverte, enchendo a minha alma daquilo que outrora eu deixei de acreditar, o Teatro canta antes do fim. Do chute um gol, do risco um futuro que, se é futuro, não tem fim. E, da forma que eu vejo, a incerteza do fim é o que torna tudo ainda mais belo.

domingo, 3 de janeiro de 2016

O mosqueteiro


Hoje um garoto me surpreendeu, veja só, que beleza! Mais novo que eu me fazendo pensar sobre a época dele - quando minha - e o quanto aquilo poderia ter feito sentido e muitas outras coisas que deveriam ter sido feitas nessa época que, ao ouví-lo, fiquei feliz por ser ainda a época dele. Esse garoto, talvez um homem, vai saber, bateu na minha cara quando esbravejou quase silenciosamente que o nosso maior poder é o tal querer que tão preconceituosamente diminuímos perante o outro.

"Assim como tudo na minha vida. Eu até gosto de ficar bêbado, mas não gosto de beber. Não tenho vontade de beber, não quero beber, oras..." ele disse e riu satisfeito. Um independente da própria independência, eu ri. Era fantástico pensar sobre aquilo enquanto ouvia sobre um telescópio que, mais que as estrelas, me faziam enxergar o universo aqui de dentro, tão cheio de poder e com receio de querer. Um garoto, veja só que beleza.

Tem dias que esse garoto apareceu, é verdade. E tem dias que ele traz, a cada vinda, uma ideia sem ineditismo, mas antes um significado sem signo, um pensamento ainda não traduzido. Foi assim com aquela ideia do outro dia que escrever tem que ser divertido. "Escrever é diversão, cara" eu sabia, mas só sabia dizer que a inspiração me faltava sem um exato por quê para justificar.

Um dia após o outro, tal qual fora o ano que passou desejei pro ano a passar. Num desses dias, veja só que beleza, o garoto de uma época minha que já foi veio, sem querer, lembrar-me que não findam as épocas quando duas diferentes se encontram. Um garoto de época outra encontrando esse garoto de época outra, que se fazem a mesma porque, ele disse oras, querer é poder até quando eu não quero poder.

São outras épocas, eu quero acreditar. "Seis anos não é nada" ele disse dois dias antes de justificar tal afirmação. Basta querer, afinal. Veio esse garoto, tem dias, me contar causos corriqueiros da vida só pra mostrar que, tão simples quanto querer e poder, está mesmo o viver. Viver bem, ele disse nas entrelinhas do que me dizia e eu precisava escutar: viver bem, e bem consigo mesmo.