quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Até o infinito


Era quarta-feira. Toda quarta-feira nós nos encontrávamos na loja de conveniência de um posto de gasolina e sentávamos à mesma mesa para dividir algumas cervejas e trocar algumas palavras. Tínhamos combinado assim porque era o único dia em que nossos horários livres na faculdade batiam. Mas aquela quarta-feira era especial: tinha cinco meses que não nos encontrávamos. Ela se formara e o mestrado que ingressara em seguida forçou sua mudança de residência para o sul do país. Eu estava tão ansioso para encontrá-la que era a primeira vez que tinha chegado primeiro que ela. Ela chegou cerca de quinze minutos depois do horário combinado e eu corri ao seu encontro ainda no carro.

“Como sempre um cavalheiro”, ela disse tão logo abri a porta dela. “Cavalheiro uma porra. Eu quero é te dar um abraço!” eu disse e puxei ela para o lado de fora e apertei com toda a força que podia. Pedi desculpas por já ter tomado duas cervejas enquanto ela não chegava e ela disse que eu não precisava ter tomado a pior cerveja de todas. “Heineken aqui só com você”, eu disse e ela virou os olhos. “Ô besteira” e eu sorri porque ela só dizia aquilo por dois motivos: na maior parte das vezes era por realmente ser besteira, mas tinham aquelas vezes que era uma besteira, mas ela sorria sem perceber porque lá dentro se sentia especial. E ela revirou os olhos com um meio sorriso que eu fingi não ver.

Ela falou do mestrado, reforçou que estava decidida a enfrentar aquela expedição que havia sido convidada a ingressar no último ano da faculdade e que o namorado virara noivo um mês antes. “To me segurando até agora” ela respondeu quando eu perguntei o porquê de não ter publicado nada nas redes sociais, “queria contar pra ti primeiro”. Eu quis até dizer que aquilo era besteira, mas meus olhos começaram a lacrimejar a saudade que a presença dela fizera transbordar. “Égua, besta” ela disse antes de levantar para pegar mais duas cervejas para nós. Voltou com pacote de salgadinhos, como costumava fazer todas as quartas-feiras. “Eu estou muito feliz que você tá aqui” eu disse antes de parabeniza-la e dizer que estava ainda mais feliz por aquela notícia.

Era véspera de feriado e nós ficamos ali por cerca de duas horas até que minha mãe ligou para perguntar onde eu estava. “Isso não ia mudar em cinco meses, né?!”, eu falei com a mão no microfone do celular depois de responde-la. Ela riu e aproveitou o intervalo para abocanhar alguns salgadinhos. Depois de saber onde eu estava, minha mãe pediu que eu não demorasse e disse que estava indo para o aniversário da filha de um amigo. “Será que é a minha prima?” ela perguntou depois que eu disse o nome da aniversariante e ela lembrou que tinha o aniversário de uma prima com o mesmo nome naquela noite. Depois de ligar para minha mãe, confirmar e dizer que a faria companhia, eu e ela nos despedimos com um “até daqui a pouco” e uma hora e meia depois nos encontramos de novo.

Era quarta-feira, véspera de feriado e o aniversário aqueles de quinze anos que os últimos convidados se despedem já ao amanhecer. Mas antes que amanhecesse nós decidimos ver o sol surgir na varanda da minha casa, só para relembrar os velhos tempos em que fazíamos isso todos os fins de semana. Então eu contei para ela o enredo do romance que estava escrevendo e ainda mantinha segredo do público. “Uau, que honra” ela disse com aquele sorriso bem feliz dela antes de me dar um abraço e perguntar se eu queria um conselho quanto ao nome dos personagens, “Mel, David e Mateus” eu ouvi antes mesmo de responder que aceitava opiniões. Disse que aqueles nomes juntos não me eram estranhos e ela me lembrou que eram os nomes dos integrantes de uma banda conhecida nossa. Demos uma pausa na conversa e cantamos duas vezes aquela música que considerávamos nossa, porque esquecemos de gravar na primeira.

“Agora você não pode mais ser minha lua” eu disse depois que terminamos a cantoria e expliquei que ela ia ser uma mulher casada dali uns meses. Ela retrucou e disse que não seriam meses, mas alguns anos. O noivo apoiou sua decisão de ir para a expedição tão sonhada, mas ela precisava terminar o mestrado antes e eles já haviam reservado o buffet onde seria realizada a cerimônia. “E eu quero reservar essa área aqui da sua casa para minha despedida de solteira” ela disse e eu ri tão logo dissemos juntos o nome que costumávamos chamar a varanda da minha casa. “Está certo. Até porque, tal qual onde vai ser sua festa de casamento, esse buffet aqui é muito requisitado e precisa ser reservado com antecedência mínima de dois anos” brinquei antes de dizer que não garantia que estivesse do mesmo jeito depois de dois anos, mas que a casa era dela. Ela riu e deu uns palpites para uma provável reforma e então começou a contar sobre as reformas que queria fazer no apartamento que vinha financiado com o noivo. “Mas ainda vai demorar um pouco” ela disse antes cerrar os lábios e fazer silêncio.

Eu fiquei observando-a por cerca de uns trinta segundos. Ela estava um pouco nervosa com tudo aquilo – eu percebi tão logo ela começou a estourar todas as bolinhas mentoladas dos filtros dos meus cigarros, pela primeira vez na minha frente – mas estava feliz – por isso deixei que estourasse todas depois de fingir por duas vezes que ia impedir. E se aquelas quartas-feiras tinham meses que não aconteciam, a última vez que tínhamos amanhecido o dia na varanda da minha casa depois de uma madrugada inteira conversando sem parar tinha sido no aniversário dela, um ano e meio antes. “Será que você sonhou com esse dia?”, eu perguntei deixando-a intrigada e desviando a atenção dela que brincava de acender e apagar meu isqueiro. “Eu? Você sabe que eu sempre dizia que não ia casar, né? Mas sei lá” ela respondeu e eu perguntei se ela não lembrava de uma vez que tinha sonhado comigo e não lembrava nada do sonho, só que tinha alguma coisa relacionada a conversarmos até o infinito. “Maninho, que viagem no tempo”, ela lembrou e cobrou que eu nunca escrevera a tal história que havia prometido tão logo ela me contara o tal sonho dois anos antes.

“Parece que hoje a gente vai conversar até o infinito, né?!”, eu perguntei e sorri um sorriso sem graça antes de dizer que achava que aquilo era amor, deixando-a intrigada e desviando a atenção dela do horizonte. “Tipo assim, ao invés de eu dizer que te amo, eu digo que eu converso com você até o infinito, entende?” eu disse e confessei que esse era o motivo de nunca ter escrito a tal história que havia prometido. “Não havia história, na verdade” eu continuei, “quando você falou em conversar até o infinito, a única coisa que eu pensava era sobre amor, mas fiquei com vergonha de dizer que não tinha inventado nada e deixei o tempo passar”. Ela ergueu uma sobrancelha, torceu o nariz e disse que não acreditava que eu tivesse ficado com vergonha de uma besteira dessa.

Disse-lhe que, na época, eu ainda não conhecia aquela diferença entre umas e outras besteiras e ela corou negando que houvesse segundas emoções por trás das suas palavras. “E até parece que eu ia dizer isso, né?” ela disse com aquele mesmo sorriso de quando revirara os olhos tão logo nos encontramos, “ô besteira”. Era quase sete e meia da manhã e, na madrugada, tínhamos combinado de ir a uma churrascaria para almoçar com alguns amigos naquela quinta-feira. “Tudo que eu sinto é tão natural, vamos adentrar o portal do amor, toda suadinha vem e faz uó, eu sou sua lua e você é meu sol” ela cantou um trecho daquela que era nossa música e disse que eu não inventasse de arrumar outra lua porque o casamento não ia fazer com que eu deixasse de ser o sol dela. Eu ri e disse que a amava. Ela continuou cantando até entrar no carro. “Ei” eu ouvi tão logo fechei o portão e virei de costas para entrar em casa. Ela já punha os óculos escuros e sorria da janela aberta. “Eu também converso com você até o infinito” ela disse. “Até o infinito”, e a última gota de saudade caiu até que ela partisse novamente.