terça-feira, 12 de abril de 2016

Doce arte

  

Finalmente tudo estava pronto: toalhas sobre as mesas, arranjos florais em pontos estratégicos, refrigerador no máximo, algumas palavras - "você é lindo até fumando, mas pode ser lindo sem fumar" - escritas numa pequena lousa vizinha de um cinzeiro, ambos deixados num local reservado para o único amigo fumante; e a playlist alternando entre sambas e versões acústicas. "Quase tudo", ela disse para o amigo anfitrião. Eram ainda cinco da tarde, encontro marcado pras seis, ela tinha tempo suficiente pra ir até o mercadinho da esquina, comprar saquinhos coloridos, barbante e transformar aquela sobra de ingredientes da sobremesa numa lembrancinha para os convidados.

Antes de sair contou quantos bombons haviam restado da produção do pavê e foi até o mercado distribuindo-os mentalmente entre os amigos que chegariam dali pouco menos de uma hora. Faltavam ainda quinze minutos para as seis quando o anfitrião retornou do banho e a encontrou na cozinha, uma cesta à sua frente com diversos saquinhos de presente iguais o que ela amarrava naquele momento. "Você fez tudo sozinha?" ele perguntou, ela disse que sim e virou pra ele um sorriso antes de dizer que só faltava mais um. "Estão lindos", ele disse antes de pedir que deixasse aquele último ser o dele. "Quero comer um doce agora e você precisa ir se arrumar, porque o pessoal já deve estar chegando".

Seus amigos eram pontuais, com exceção do fumante que era o único ainda não presente no jardim quando ela apareceu pronta às seis e meia. Ele chegou já depois do jantar, meio bêbado e reclamando da música. "Poxa, gente, é um encontro de amigos ou viemos velar um corpo?", ele perguntou antes de tirar o aparelho conectato e plugar o próprio celular nas caixas de som. "Não precisamos deixar de ouvir Caetano, mas que tal esse Caetano?" e a voz do cantor baiano se misturava às dos outros integrantes dos velhos Novos Baianos. Olhares tortos. "Tudo bem, vou colocar a música chata de novo", ele disse antes de desfazer a troca de aparelhos e acender um cigarro a caminho do local que ela reservara pra ele.

Talvez devesse ficar por ali, longe dos olhares recriminadores. Olhou para a lousa próxima ao cinzeiro e, tivesse um espelho à sua frente, veria seu próprio olhar o recriminando. Duas semanas antes ele havia recebido o convite: uma mensagem de voz dela contando sobre o desejo de se aventurar gastronomicamente e pedindo que ele fosse uma das cobaias para tal experimento - que seria dali uns dias talvez, mas ainda sem data certa. Ele deu palpites no cardápio, produziu um convite virtual e prometeu que, fosse o dia que fosse, lhe ajudaria com os preparativos. Promessa não cumprida e ela ainda se dera ao trabalho de investir tempo num lugar reservado pra ele. Estava lendo a lousa novamente quando a ouviu a voz dela.

"Hora da surpresa", ela gritou antes de ir até a cozinha e voltar com aquela cesta cheia de saquinhos nas mãos. "Eu fiz contado" ela falou depois de driblar as mãos estendidas do anfitrião. "Mas contei comigo também, então fica com o meu", ela disse e sorriu, grata por ele ter gostado tanto da receita dela. Distribuiu entre os demais e, com um único saquinho em mãos, se dirigiu até o local reservado para o amigo fumante. Ele pediu desculpas pelo atraso, ela disse que não tinha problema e que tinha guardado um pouco de cada coisa pra ele comer, se quisesse. "Ó, não é nada demais", ela disse depois de entregar o saquinho pra ele, "mas é que sobraram uns bombons e eu inventei isso aí".

Ele agradeceu, ela o convidou para se juntar aos outros e ele disse que ia em seguida. "Ela sempre fazendo tudo ser mais lindo com nada demais", ele pensou enquanto sorria. Desamarrou o laço e em menos de dois minutos já tinha comido os três bombons trazidos dentro do saquinho. Arrancou um pedaço de papel do maço de cigarros, escreveu umas poucas palavras seguidas da data - "hoje eu comi o doce mais gostoso do mundo feito pela menina mais doce do mundo" - jogou dentro do saco vazio, amarrou o laço novamente e guardou-o cuidadosamente no bolso da calça. Só aí deu-se conta que os outros ao longe já se despediam todos. "Carapanã encheu, voou", ele lembrou do dito popular em sua terra e talvez fosse hora de ir também.

Ainda estava meio bêbado. "Me espera lá no portão, vou só tirar água do joelho e já pegarei o caminho da roça", ele gritou antes de seguir para o banheiro. Quando voltou estavam apenas ela e o dono da casa esperando-o no portão. "Só dois beijinhos", ele disse enquanto estalavam a boca de um nas bochechas do outro, "esqueci de lavar as mãos quando saí do banheiro", ele explicou já a caminho do carro. Ela riu daquele jeito engraçado dele e, portões já fechados, o amigo anfitrião disse que a surpresa dele era a faxineira contratada pra limpar tudo no outro dia. "Vou só pegar umas coisas lá atrás", ela disse depois de agradecer pela ajuda, sem saber da vindoura vontade de chorar.

Sobre a mesa cheia de pratos e talheres sujos estavam quatorze saquinhos fechados, cada qual com três bombons. Sem contar ela e o dono da casa, dez minutos antes haviam quatorze pessoas sentadas ao redor daquela mesa. Ela estava tão feliz que acabou esquecendo o que o amigo fumante pensava, naquele exato momento a caminho de casa, com as mãos sujas de giz: não importa o quanto ela se importe, algumas pessoas simplesmente não se importam. Pegou a bolsa, deixou a primeira lágrima escorrer e três ou quatro mais de cada lado enquanto guardava nela o cinzeiro. Foi quando avistou a lousa alterada: "Sorria! Você tem o sorriso mais doce do mundo. Isso aqui é pra você" e uma seta apontava para um papel dobrado no canto direito da moldura.

Quando o amigo anfitrião gritou seu nome, quase dez minutos depois, ela já havia perdido as contas de quantas lágrimas não conseguira segurar enquando lia o bilhete cheio de manchas de giz. "Eu pensei em pegar todos, mas você iria perceber meu excesso de bolso. Não queria te ver mal num dia em que te vi tão bem. Mas independentemente do que eu queira ou não, não posso te esconder a verdade, e a verdade é: quando a gente transforma em arte aquilo que nos faz sofrer, acabamos encontrando outros caminhos, foi você quem disse, lembra? Vê aí o que você vai fazer com aqueles sacos sobre a mesa. Tenho certeza que vai ser uma ideia melhor e bem menos egoísta do que a minha de encher os bolsos", e ainda que não conhecesse a caligrafia, o papel rasgado do maço de cigarro não deixava dúvidas da autoria daquelas palavras.

No dia seguinte, cedo da manhã, quatorze moradores de rua tiveram o dia iluminado pelo sorriso dela. E sorriram doce o dia todo, obra de arte dela, a menina dos doces que com o sorriso mais doce do mundo conseguia fazer sorrir aqueles que sabiam sorrir de verdade.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

James Joint


Sempre foi realmente muito confuso pra mim o fato de um beijo, aquele primeiro de todos, ter dado origem ao sentimento que tão serenamente me preenche e que eu sinto por ti. Don't know why, just know i want to. No fim das contas eu não sei mesmo porquê, só sei que eu quero você. Quero você com todas as forças do meu corpo, porque - enquanto conversávamos ontem e eu te ouvia dizer que talvez fosse coisa do destino mesmo - acabei percebendo o quanto viver a realidade de um antigo sonho impossível torna possível outras coisas inimagináveis acontecerem. Flutuar, por exemplo. E ontem você me fez flutuar mais de uma vez.

Talvez eu não recorde a quantidade exata de vezes, mas não precisaria mais do que a lembrança de uma única delas para a noite de ontem ficar na minha história como um dos capítulos mais lindos, incríveis e surpreendentes que eu pude ver escritos. Você me fez flutuar várias vezes e todas aquelas de que me recordo vem com teu sorriso como a última lembrança antes de meus pés ficarem suspensos no ar. "Dá um beijo", você disse depois de ouvir alguns dos anseios confusos da minha mente. Deu um sorriso, fechou os olhos e foi aproximando teu rosto do meu, enquanto meu coração pulsava tão aceleradamente que eu quase não percebi estar com os pés fora do chão.

Kiss it, kiss it better, baby. Não te beijar sempre foi garantido, afinal - e te beijar nunca esteve no rol dos sonhos impossíveis, ainda que seja o beijo um dos carinhos mais presentes em todos eles. Mas não foi o beijo que me fez flutuar, ainda que eu não tenha sentido o chão sob meus pés enquanto te beijava. Talvez porque foi rápido, mas de certo que nunca terei tempo suficiente pra sentir qualquer gosto teu - e o fato de ter me conformado com isso faz com que, por mais efêmero que seja, eu aprecie qualquer momento dividido contigo. Te beijar enquanto flutuava já era pra mim como a chave de ouro que encerraria nossa primeira noite de carnaval, independente de quantas horas ainda restassem pro fim.

I don't wanna rush into it, if it's too soon. Sete anos daquele primeiro beijo. Sete anos de histórias entre beijos, abraços, reencontros, desencontros, camas, tramas e infinitos dramas que só a passagem do tempo foi capaz de me ensinar que às vezes a vida é daquele jeito mesmo e a gente nem sempre pode ter o que quer, mas só a mim cabe reconhecer o verdadeiro valor de tudo aquilo que já tenho. Preciso que você saiba: sete anos fizeram do tempo o meu adversário mais cruel. Por três vezes achei que te tinha por inteiro pra mim e no nosso penúltimo reencontro percebi que ser teu por inteiro me bastava: descobri novas músicas, ampliei meus interesses e, ainda que permeando pelo plano dos sonhos impossíveis, dei a um futuro junto contigo a prioridade ante outros objetivos. 

Quase um ano desencontrado de ti, receoso de te encontrar enquanto era ao meu encontro que você queria ir também. I don't even really care about you no more. Você me perdoou pelo abandono quando eu ainda nem sequer tinha tido a hombridade de pedir perdão. Up against the wall we don't need a title. Sete anos de histórias rotuladas pelo conhecimento de uns, pelos olhos de outros e ouvidos de alguns poucos. Por três vezes eu vi você partir e acabei partindo quando confundi teu jeito de amar com falta de amor. Mas o que tua libido tem de selvagem, tem de estranho o nosso coração. E o teu, bem, em breve nosso primeiro beijo completa uma década e eu tenho certeza que, não importa quantas décadas se passem dele, teu coração nunca deixará de ser estranho pra mim.

Você tem seus demônios e eu tenho meus arrependimentos. O tanto que eu imagino que seja difícil pra você planejar o futuro ao lado de outra pessoa que não quem esteve toda a vida do teu, é o tanto que eu me arrependo de ter deixado a vergonha adiar nosso último reencontro - que assim pra sempre seja - e eu sinceramente não sei como fiquei tanto tempo sem te abraçar, te sentir, te fazer cafuné. Man, I know that it's hard to digest, but baby this love is so different from the rest. And I know it seems hard to accept, but you've got to do it. Eu tenho meus arrependimentos. Nenhum deles é você.

Você me fez flutuar, sentir por dentro um vazio que só estando no meu lugar pra compreender o quanto de amor pode caber num espaço aparentemente cheio de nada. Eu penso demais e talvez por isso vez ou outra me encontre também cheio demais, coisas do meu mundo e de mundos outros, que são mais como água de banheira que uma poça d'água no meio da rua: melhor abrir logo o ralo que esperar evaporar. Come back to me, so I can feel alive again. Entre beijos, olhares, voz e gestos carinhosos, antes de preencher de amor o vazio, tinha aquele sorriso. Corpo e alma uma coisa só. E eu flutuava. What do I gotta do to get in your motherfuckin’ heart?

É realmente muito confuso, mas o que aconteceu comigo depois daquele primeiro beijo talvez seja mais inexplicável que carente da escolha entre motivos racionais ou emocionais. Que mal há em ter na vida algo que não careça de explicações? Com você eu vivo novas experiências, experimento novas sensações e sinto o mesmo coração acelerado enquanto por dentro meu corpo treme, seja recebendo um afago, seja pela forma que você diz me amar nesse idioma que só entende quem aprende a te escutar além da voz. E enquanto alguns acreditam na sensibilidade como uma característica de todos os seres vivos, outros não conseguem compreender a recíproca de um sentimento como aquele que sente.

You take me higher, higher than I've ever been, babe. Você me fez flutuar e não me importa se foi por causa do amor que eu sinto ou pelo fato de ainda hoje por ti ser apaixonado. Não me importa se era o álcool na tua cabeça ou aquele sorriso. Anos se passaram desde aquele primeiro beijo até esse agora e eu já quis muito que ele não tivesse existido, porque cada partida sua foi dolorosa. E doeu muito até que eu conseguisse compreender que era aquela dor muito mais culpa da minha carência que prova de desprezo seu. Você foi embora sem dizer adeus e eu acreditei que havia conseguido dizer por você. Mas cada partida sua era dolorosa até o reencontro seguinte. Bastava diminuir a distância para que aumentasse a velocidade dos meus batimentos cardíacos e a intensidade do que desde aquele primeiro beijo começou a crescer dentro de mim.

But I'm in love, can't blame me for checking. Afinal que mal há em ter na vida algo que não careça de explicações? Acontece que o que aconteceu depois daquele beijo tem, sim, uma explicação: eu me apaixonei repentina e, o mais louco, perdidamente por você. E o fato de me importar mais com meus pés fora do chão que com o por quê de me sentir assim não isenta de existência um outro motivo possível e real: o primeiro beijo, o prefácio do que eu chamo de minha história com você. I look in your direction, hoping that the message goes. Foi quando tudo começou, com teu beijo inexplicável, a única explicação pro teu corpo ser meu maior desejo, conquistar teu coração ser meu maior anseio e minha alma ter na tua seu ponto de equilíbrio.

Ontem você sorriu, eu flutuei e te ouvi dizer sobre nós, não mais sobre eu e você. Foi aí que perdi as contas, porque não acreditava ser você quem primeiro falava sobre planos futuros, dividir uma casa e ir pra cama todos os dias, contrariando meu atual estilo de vida de solteiro com Netflix em casa. Mas é que, além de inexplicável, aquele primeiro beijo também fez de ti a minha maior exceção às regras. Somewhere close to you. Quando parti, teus cabelos já eram meus, mas levou um tempo daquele primeiro beijo até que eu me atrevesse ao primeiro cafuné. E você já era exceção de muitas das minhas regras, então talvez dar vazão àquela vontade quase incontrolável de te beijar não fosse aconselhável - por querer mais e mais e mais e mais elevado à potência máxima, e não poder ter no segundo a seguir.

Eu já tinha descoberto: ter aquela amizade pra vida inteira podia ser ainda melhor que te ter por inteiro. Close to you. Com a amizade acabei descobrindo o quanto eu realmente te amava. E o quanto eu já tinha perdido tempo querendo algo que só o futuro iria me permitir ter ou desencanar de vez, deixando de lado o que tinha no presente como certo. E ainda que fosse essa uma regra geral, seria você a exceção se o amor nunca pudesser ser o bastante. Mas, sim, às vezes o amor não só é o bastante como só o fato de amar alguém ou alguma coisa já é suficiente também. Só sentindo pra não só compreender como entender o que é. If you let me, I'd be there by now. Quando te amar me bastou, eu joguei a toalha do querer e pude sentir teu amor.

Eu não flutuei, mas teu amor veio e quando o senti era a primeira vez que um sonho contigo se atrevia a aventurar-se no além muro das impossibilidades pra se tornar realidade. Eu nem precisava flutuar, na realidade; aquilo já era incrível só pelo fato de estar acontecendo. Quando eu deslizei os dedos pela tua cabeça a primeira vez, descobri o quanto aquele cafuné era também o nosso momento mais íntimo - mais até que qualquer uma daquelas vezes que precederam suas partidas. Eu quis um beijo teu como sempre quero e talvez nunca deixe de querer. Mas entre sua última partida e aquela minha, acabei descobrindo naqueles cafunés algo que até então me era inimaginável - e que mesmo depois de ontem continuo achando tão ou mais incrível quanto flutuar: passear com as mãos pelos teus cabelos é como te beijar. Close to you.

Aquele primeiro beijo foi semente que germinou e espalhou-se por todo meu corpo. O primeiro beijo, inexplicável, mas - pra qualquer que seja a pergunta - a melhor explicação. Eu te quero com todas as forças do meu corpo. E talvez querer teu beijo seja uma exceção à regra dos pra sempres que acabam. Teu beijo eu quero até quando já tenho. É assim desde o primeiro. E eu quero teu corpo colado no meu, quero sentir teu coração acelerado de saudade depois de uma viagem e quero casar contigo. Eu já tinha em mente alguns dos nossos dias, em casa ou apartamento, com filhos ou só curtindo com nossos sobrinhos; mas ontem, ao te ouvir dizer pela primeira vez todas aquelas coisas pra mim, o futuro foi a última coisa sobre a qual eu pensei. 

Sempre foi realmente muito confuso pra mim o fato de um beijo ter dado origem ao sentimento que tão serenamente me preenche e que eu sinto por ti. E, não só isso, aquele primeiro beijo influenciou em muitas das direções que eu segui nos últimos anos. Eu lembrei de muitas direções erradas, lembrei de atalhos que quis pegar e da dificuldade que é andar pela direção certa, mas sempre cheia de obstáculos. Vieram momentos bons, momentos sofridos, dores e tantas vezes que dar vazão à minha vontade tinha dos outros um certo desprezo. E vieram as lágrimas. Um choro tímido, marejando os olhos incrédulos em ter você na minha frente falando tudo aquilo. Um choro de quem reconhece a impermanência daquela sensibilidade, mas vê no teu sorriso a melhor prova que não te falta a verdadeira essência. Um choro inevitável quando a realidade se faz presente de algum sonho que acreditamos impossível. Que traz junto dele uma sensação esquisita, como se misturasse plenitude, alegria, surpresa e satisfação numa coisa só e esse sentimento sem nome só não fosse maior que meu amor.

Eu quero casar contigo. Quero que esse diariamente vire dia-a-dia da noite pro dia como aquele primeiro beijo me fez apaixonar por você. Quero ser o motivo do teu sorriso a cada amanhecer. Dois corpos, duas almas, dois corações e um futuro em que eu possa ser mais teu companheiro que tua companhia. Você é minha exceção e pra estar contigo só o amor me basta. Ontem eu não pensei sobre futuro, porque precisei relembrar do passado e agradecer única e exclusivamente por aquele presente. Hoje eu pensei muito sobre você, sobre como cheguei até aqui e sobre onde eu não só quero chegar, como você me inspira a caminhar pra chegar. E você me fez flutuar, sabe? Toda vez que eu te beijo é como se fosse a primeira vez, mas ainda não houve nada além do teu beijo que se perpetuou na memória, e sempre que acontece novamente faz o coração bater na mesma intensidade acelerada como se nunca tivesse acontecido.

Ontem não só foi a primeira vez que você me fez flutuar, mas a primeira em que eu flutuei e, se não me for possível ter isso de novo, de certo que outras coisas virão ainda pela primeira vez me encantar.
Eu nunca havia imaginado que te fazer cafuné seria como te beijar. E toda vez que eu te beijo é como se fosse a primeira vez.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

Não contem comigo



Não contem comigo pra nada, estou saindo da lama. Alheio à beleza, às vestes velhas, à falta do cansaço e às incansáveis tentativas eivadas de frustração. Alheio, principalmente, ao medo que me tomou conta tantas incontáveis vezes. Parei de querer ir mais alto, preferi sentir o chão sob meus pés e, não contem comigo, acabei por perceber que eu teria que dar meus primeiros passos na lama se quisesse realmente voltar a caminhar. Estou saindo da lama e percebi que quanto mais alheio ao mundo de fora eu fico, mais leve e próximo de terra firme meu corpo se encontra. Então não contem comigo pra nada, já é difícil suficiente manter o equilíbrio tendo que lidar com a falta de medo que não me deixa descansar.

Que falta faz o cansaço. Mas que falta faz mesmo a beleza, alheia à todo o resto, disposta ao sacrifício de incontáveis anos que dariam-lhe novas vestes em nome dos anos de agora que, estes sim, não à toa chamam-nos presente - um tempo de graça que a nada se assemelha ao tal futuro que promete o novo, mas só chega e se faz novidade num hoje como esse aqui. Hoje estou saindo da lama, como um dia estive no passado e não espero continuidade se existir o futuro. No presente de um amanhã, quando talvez possam contar novamente comigo, espero que meus passos tenham na lama só um rastro seco - marca de um agora no passado a lembrar quanto tempo levou pra que eu saísse de lá.

Então não contem comigo, estou saindo da lama e a quantidade de passos a marcar um agora no passado nada me dirá do tempo que levei entre hoje e o primeiro deles em terra firme. Serão sempre tantos passos, mais ou menos tempo entre um e outro. Alheio a tantas infinitas coisas, dentre elas de certo que não está o tempo. Não posso ser indiferente ao tempo, porque - diferentemente da beleza, das vestes velhas e qualquer coisa incansável que me canse - o tempo não é indiferente a mim. Que falta faz o cansaço, mas - mais ainda que a beleza - que falta faz não perder mais tempo. E não posso perder tempo logo agora que estou saindo da lama, então não contem comigo.

Não contem comigo pra nada, estou saindo da lama.

Cafuné

 

Você sorri com os dedos enquanto eu acaricio teus cabelos num vai e vem desgovernado, que minhas mãos não conseguem controlar velocidade e direção ao mesmo tempo, porque é mais ou menos isso que encostar na tua pele faz comigo aqui dentro: distrai, descontrola, apaixona. Você sorri e eu te amo, mas me apaixono ainda mais por você.

Uma das mãos no volante e outra indo à nuca e ao pé da orelha, que não são minhas, mas, sendo suas, a mim são entregues com a confiança que só tens em ti, e com a qual sorri de olhos fechados, só com o balançar da cabeça. O automóvel controlado é oposto ao que bate no meu interior à esquerda, tão longe de você: coração descontrolado, distraído, apaixonado.

Ruas movimentadas, envoltas no silêncio, desertas ou iluminadas; vira à esquerda, cruza, vira à direita ou arrisca o amarelo pra testar a atenção. Assim também se passaram os últimos anos e eu bem me lembro de como me foi arriscado desafiar tua atenção quando levei minhas mãos ao aconchego dos teus cabelos a primeira vez.

Coração acelerado, energizado pelo tocar na tua pele que meus dedos arriscam ao deslizar até o pescoço. É sempre uma primeira vez o jeito que você me faz sentir e - talvez as pessoas não saibam - é tão difícil pra mim quanto pro resto do mundo entender o porquê de ser sua a única pele capaz de me distrair, me descontrolar, me fazer apaixonar-se cada vez mais assim.

Eu te amo tem tempo. E é o amor que mantém em mim a serenidade quando ao volante estão minhas duas mãos, como todo o meu corpo a sentir falta da tua companhia. É o amor que, dentre todas as loucuras do mundo, se fez em mim a mais sã, para que eu pudesse hoje entender, ao te ver sorrindo com os dedos, que não existe tempo a se contar do quanto por ti eu sou apaixonado.

Eu me apaixono por você todos os dias. Se não é um calafrio inesperado, é teu jeito de dobrar os dedos da mão entre a cabeça e a almofada; se não é a surpresa de querer ser minha companhia, é querer a mim como sua companhia; se não é o abraço carinhoso na despedida, é o abraço carinhoso na chegada, e por aí vai: me distraindo, descontrolando e eu cada vez mais me apaixonando.

Não me importa - o que, por si só, devia ser motivo suficiente pro resto do mundo não se importar - entender o porquê da tua pele ser a única capaz de me fazer sentir assim. O fato é que, você e suas primeiras vezes, é a primeira vez que estar apaixonado me importa muito mais que ser feliz pra sempre no amor. A vida não é um conto de fadas, afinal.

Eu vejo sorrisos onde outros julgam não existir. Enxergo esperança até que a chama da vida tenha se apagado. Prefiro ler gestos a ouvir palavras ensaiadas e, exercitando diariamente, espero um dia me ver livre de todos os preconceitos. E pode ser que nunca mais eu me distraia, quiçá um dia eu perca tudo, menos controle. Não sendo a vida um conto de fadas, tenho você pra minha encantar.

Eu te amo tem tempo. Quando você me distrai é o amor que chama de volta minha atenção. Quando você me faz perder o controle, é do amor que extraio forças pra retomar a direação. E quando eu me apaixono por você, é amor o que sustenta nossa falta de perfeição. Eu te amo tem tempo. E não canso de me apaixonar por você todos os dias.

Isa, a bella

Era branca como a neve a menina. Quando a conheci, numa de minhas madrugadas atrevidas, faltava-me sobriedade para poder enxergar que nela reluzia o luar. Tenra idade ainda, mais da metade dos dedos de uma mão seus anos distantes de mim, não via eu que tal menina tinha nos olhos um brilho que só os esperançosos ainda insistiam em ter. Eu era um esperançoso e, entre conhecê-la madrugada e descobri-la amanhecer, custou um cadim de anos cujos meses por pouco não me fizeram perder a esperança.

Isa era o nome dela. Que menina de alma mais bela, e talvez fosse culpa da posição dos planetas e constelações no exato momento em que o mundo a recebera como um dos melhores presentes ao nascer. Gostava das estrelas, a menina. Estudava-as, desenhava-as em mapas que tinham as histórias de tantos outros presentes que o mundo receber - e alguns poucos que não eram tão presentes assim. Mas gostar de estrelas nem sempre é suficiente pra se fazer perceber tão bela no universo interior como o era do lado de fora.

A menina era bela, mas junto ao olhar carregava um bocado de tristeza que era dela, mas não tinha nela a origem. Aqueles que carregam o brilho dos esperançosos tem dessas dificuldades: não conseguem deixar que os tristes se afoguem em deseseperanças e, daqueles que encontram pelo caminho, levam qualquer tristeza que se aproxime do excesso. Era branca como a neve aquela bela menina, mas o mesmo luar que nela reluzia era cheio das sombras que só o amanhecer levava embora ao trazer um novo dia.

Eu pouco sabia das estrelas, mas de certo que Vênus tinha algo a ver com tudo de belo que por dentro e por fora aquela menina se fazia preencher: amor. Era feita de amor a tal Isa, que muitos de Bella insistiam chamar, sem sequer darem conta que não era pela voz que sua verdadeira beleza se extraía. Isa era bela, mas o que de mais belo ela tinha - além da beleza que, apesar da tristeza, há no brilho dos olhos cheios de esperança - era a inocência que só as almas puras como a dela tinham sem imaginarem possuir.

Isa, a bela. Branca como a neve, de alma pura e pro mundo um dos melhores presentes. Menina luar, ansiosa pelo próprio amanhecer para iluminar o universo interior de tantos outros que, como ela, insistem em ter nos olhos um brilho de esperança - era esta responsável por não deixá-la se afogar no excesso de tristeza alheio que vinha com as sombras tentar a pureza lhe tirar. Já não era de tão tenra idade como quando a conheci, mas mais da metade dos dedos de uma mão será distância imutável dos anos a nos separar.

Algumas distâncias são assim mesmo, tornam impossível um do outro se aproximar. Mas, primaveras à parte, soube a menina sentir o que os anos a mim se fizeram esclarecer: "tem sentimentos que só se vivem aos 15 anos, tem esclarecimentos que só surgem aos 50", ela disse quando eu já contava metade de um século, sem fé ou crença na existência de outros olhos que brilhassem como os dela. Estava esclarecido, afinal: se vivi aos quinze, poderia aos cinquenta recordar. E se a ebriedade impediu que visse nela reluzir o luar, a sobriedade foi o que permitiu que a esperança ela me fizesse enxergar.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Que venha a primavera


Um ano calado, de olhos abertos pra não te perder num piscar, e minha vista cansada ainda te reconhecia somente pela silhueta. Em meio a tantos outros do mundo, meu coração te escolhera de forma tão decidida que, além de te reconhecer numa sombra, eu não conseguira sequer me mover ao te ver virar as costas e começar a caminhar sozinho na direção que eu queria pra nós dois. Era reconfortante, eu assumo, ainda poder te enxergar quando nenhum outro sentido meu conseguia te alcançar.

Minha culpa acompanhou a inércia durante todo o tempo em que estive ali a te observar. E eu não conseguia entender o porquê de, se realmente havia me perdoado, você não me querer a seguir pela vida ao seu lado. Enquanto eu me questionava, minha vista cansava e ia ficando cada vez mais difícil minha consciência se sobrepor ao inconsciente. Até que, tal qual de tantas outras saudades suas, da silhueta ficou somente a lembrança. E deixar o passado pra trás não é uma de minhas características mais marcantes.

Eu não sei dizer por quanto tempo ainda me mantive forçando a vista tentando te encontrar, mas entre uma piscada involuntária e outra eu peguei no sono e você veio então me visitar nos sonhos. Tinha tanto tempo que eu não te via, mas os olhos fechados ainda mantinham a nitidez do teu rosto, do teu jeito, dos teus perfumes, do teu gosto e da tua voz. Foi assim que eu descobri o quanto sonhar pode ser perigoso às vezes: nos sonhos nunca há impossibilidade para o que queremos acordados. Se não tivermos cuidado acabamos nos perdendo por lá.

O fato é que eu te quis por muito tempo. Eu te quero há muito tempo, na verdade. Você foi um poder, que virou querer quando eu não podia mais. Então eu pude e eu quis, e quis mais e já não mais podia. Era sempre assim enquanto eu estava acordado, mas ao dormir você era todo meu. Eu te tinha comigo a dividir a cama, me salvando como herói, provocando meus instintos animais numa pista de dança, suprindo aquela vontade infinita de me amar como eu há tanto te amo. Não havia a impossibilidade do “nós” que a realidade me gritava.

É que não havia mesmo – realidade que ladra não morde, afinal. Não havia impossibilidade no "nós" e, enquanto eu te vi caminhando até perder de vista e antes de perder a vista, aquele tempo ia se fazendo perdido muito mais pra mim do que, momento ou outro, meu amor próprio quis que fosse pra você. O mundo é redondo, afinal. Não era pra longe que você seguia, mas na minha direção. De olhos fechados e perdido em sonhos e pensamentos eu não pude ver que ao meu encontro vinha a mesma silhueta que eu vira sumir.

Teu coração me escolhera de forma tão decidida que você tinha se disposto a dar aquela volta ao mundo sozinho, porque só assim eu descobriria que, pra caminharmos lado a lado, era preciso que caminhássemos sozinhos na direção do outro. E quando eu me calei, minha audição tanto se cansara da minha própria voz que o silêncio a existir entre eu e você se fez mais alto que a música deliciosamente desafinada que seus lábios cantavam e encantavam a distância que, ao contrário do silêncio, diminuía entre você e eu.

Eu estava dormindo, envolto na concretização inconsciente de tantos sonhos, desejos e vontades que por tantas vezes me dominaram o corpo, a mente, o coração. Eu estava finalmente dando vazão a todo o amor que tinha guardado no peito, transformando em sonho o que você nunca me dissera com todas as palavras ser a linha de chegada daquela solitária caminhada que, antes de pegar no sono, eu acreditei ter sido sua última partida. E, não fosse seu esforço e aquela melodia desafinada, esta realmente aconteceria e eu nem poderia me despedir.

Uma volta ao mundo implica em um mundaréu de obstáculos, desvios e alguns atalhos que despertam nossa curiosidade e vez ou outra podem nos fazer perder o foco, a lucidez, quiçá a vida. Você caminhou em linha reta, na esperança de que eu percebesse a tempo e fosse ainda mais rápido ao seu encontro, mas – sua tristeza, minha sorte – adormeci no mesmo lugar de onde você se despedira na última vez. Uma volta inteira no mundo e eu ainda não tinha percebido que bastava andar só um pouquinho pra trás que seguiríamos juntos pra frente?

Foi ainda em sonho que comecei a te ouvir cantando: quinta-feira, dia do nosso aniversário de namoro, você achou que eu iria gostar da ideia e me convidou pra comemorarmos no karaokê. Fiquei surpreso com o convite, mas aceitei de bom grado e eu nunca vou esquecer daquela noite, porque foi como se um sonho se transformasse num pesadelo pra se fazer realidade e eu perceber que não, o que a realidade me ladrava não era a impossibilidade, mas que só acordado eu teria a oportunidade de ser feliz.

Não bastasse a surpresa do convite, você me surpreendeu com alguns convidados criteriosamente escolhidos e aquele pedido de licença no microfone: disse que me amava e sabia o quanto alguns momentos tinham significados diferentes pra nós, mas que o mais importante era o significado que eu tinha pra você e todas aquelas pessoas que ali estavam. E eu tinha certeza que a seguir viria um pedido de casamento, não era possível que sua timidez se permitisse vencer por outro motivo.

Pelas portas entraram violinos ambulantes, numa melodia triste que eu acreditava ser mais por você conhecer meus gostos musicais e menos pela tristeza que se apossou de mim quando você cantou os primeiros versos e só conseguia te ouvir dizendo que estava desistindo de mim. E eu lembrei da despedida: um último abraço, minhas desculpas, seu perdão, você virando as costas, nossas mãos sem soltando no distanciar dos dedos e a distância se fazendo silêncio nos meus apelos pela tua volta sem qualquer reação.

Agora era eu quem não reagia, exceto pelas lágrimas que não consegui conter. E tua voz agora cortava o silêncio que eu não sabia nunca ter existido desde que me calara. Sua tristeza me ver adormecido, minha sorte essa tristeza ter atrasado um pouco a velocidade dos teus passos, mas momento algum obstruído a intensidade dos teus apelos para que eu acordasse a tempo de dizer qualquer coisa que te impedisse de desistir de mim. E eu acordei um verso antes de você cantar que estava me dizendo adeus, tão logo ouvi teu amor me chamando.

And I will swallow my pride, e de repente todo meu sonho se desfez. Um vazio onde antes mesas e cadeiras reuniam tantos outros que se importavam. Um vazio onde antes um palco e um pedestal te tinham tão próximos como tanto tempo eu já não tinha. You’re the one that I love, como eco eu ouvia se repetir enquanto atravessava pelas águas ferozes que se encontram entre consciente e inconsciente. E quando eu abri os olhos, nada. Tal qual antes de adormecer, você não estava ali nem como silhueta.

You’re the one that I love¸ eu ouvi e talvez fossem ainda os ecos do meu inconsciente tentando acreditar que aquele meu querer tinha razão de ser, porque já era um querer tão seu quanto meu. E a nitidez da sua voz estava mais para as cordas vocais que para as minhas lembranças. And I’m saying goodbye, resolvi seguir minha intuição auditiva e, vista ainda cansada, esfreguei os olhos consciente de que o mais provável era nunca mais conseguir tê-los em você. Às minhas costas tantos outros do mundo caminhavam nas mais diferentes direções.

Say something, I’m giving up on you, e ainda que o silêncio se sobrepusesse à cantoria, seria impossível não te reconhecer – agora a passos lentos – seguindo na minha direção. Eu estava sonhando? Você estava voltando? Por que eu me sentia como seu futuro estando num presente do qual você escolhera não fazer parte no passado? Em meio a tantas perguntas, percebi que na sua voz estava a resposta que eu procurava: conforme se elevava sua altitude, diminuía entre nós a distância. “Não desiste de mim”, eu disse baixinho e comecei a andar.

Se me deixasse perder novamente entre dúvidas e questionamentos, talvez fosse mesmo meu destino aquele que eu não queria, mas já esperava. Ficar parado ao te ver seguindo na minha direção era menos cuidar do jardim pra te ver chegar borboleta e mais me fazer camarão sonolento a perder-se depois de levado pela onda. “Não desiste de mim”, fiz dessas palavras meu apelo enquanto seguia na sua direção e já não era só a silhueta ou a voz se aproximando. Junto a você o perfume das flores, na mão uma rosa calejada pelas dores do tempo.

And I’m sorry that i couldn’t get to you, eu ouvi antes de acelerar mais o passo. Eu que lhe devia desculpas por não ter percebido antes. Eu que lhe devia desculpas pelo tempo que a culpa tinha me mantido inerte e não ter te alcançado antes. And anywhere, I would’ve followed you, e eu comecei a correr porque nem o cansaço dos meus sentidos me faria desistir daquele presente ou permanecer parado me lamentando por ser seu passado. Say something, I’m giving up on you, eu te ouvi cantar pouco antes de você perceber que eu tinha acordado.

“Não desiste de mim”, eu consegui gritar pela primeira vez e foi também a primeira vez que você me ouviu desde que escolhera aquela rosa pra te acompanhar no meu silêncio. Ela era como eu, afinal: desprovida de qualquer regra no manuseio, salvo cuidado e atenção, refém da passagem do tempo que transforma histórias em rugas e faz da morte nossa única eternidade. Meu grito se fez sorriso, e era o teu sorriso de felicidade, de esperança – de uma chance que, sendo primeira no amor e talvez última pra vida, eu faria de tudo pra ser a exceção na sua regra de arrependimentos.

Say something, I’m giving up on you. “Não desiste de mim”, você ouviu e abaixou a cabeça tão logo o sorriso escapou pelos lábios. Olhou para as pétalas que ainda se mantinham agarradas ao botão, desgastadas pelo tempo e de firmeza aparentemente fragilizada, e acreditou num encontro onde ainda nos fosse possível aguá-la e suprir-lhe com os nutrientes necessários para sua sobrevivência. Eram poucas pétalas, você sabia, mas a sobrevivência da rosa dependia menos de sua beleza no presente e mais do quanto ela ainda podia ser bela no futuro.

Eu nunca fui muito bom em adivinhar pensamentos e, se tratando de você principalmente, não fosse aquele sorriso entre me ouvir e olhar a rosa, eu talvez pensasse que a cabeça abaixada era decepção. Mas eu conhecia aquele gesto, de certo que como ninguém. Era teu sorriso mais sincero, teu jeito acanhado de exteriorizar o que três palavras jamais conseguiriam expressar de forma mais intensa: eu te amo. Então eu não sabia exatamente o que você pensava naquele momento, mas me era suficiente no teu gesto saber reconhecer o teu sentimento.

Say something¸ findava a canção quando nossos dedos se tocaram então pela primeira vez desde quando você partira naquela caminhada solitária. “Não desiste de mim”, eu disse baixinho em seu ouvido tão logo nossos corpos se uniram num abraço. “Eu não vou desistir de você”, eu te ouvi dizer e era tão real quanto o que meus olhos viam; tão real quanto teu cheiro misturado ao perfume do meu desodorante preferido; quanto o toque dos teus dedos, o abraço apertado e teu peito colado no meu; quanto o sabor do beijo que nunca se perdeu.

Restava na rosa uma única pétala, que eu mesmo fiz questão de arrancar. Se era a rosa como eu, precisávamos ambos nos livrar de tudo o que nos impedia florescer mais belos e fortes. Como aquela pétala haviam ainda muitas coisas presas a mim que inevitavelmente iriam perecer com o tempo. Dentre elas nenhuma impossibilidade carecida de sonho para tornar-se real, nenhuma possibilidade eivada apenas da voluntariedade do tempo, fazendo da minha vontade o único obstáculo entre aquilo que é impossível e como fazê-lo deixar de ser.

Enquanto construía minha crença na sua partida ia perdendo dos sentidos a sensibilidade e, pouco a pouco, acabei entregando à minha inconsciência tudo aquilo que, consciente, eu almejava pra mim. Fiz dos sonhos realidade e, confesso, tanto tempo navegando nas águas turvas do meu inconsciente tornou-me mais covarde e menos determinado. Tantos sonhos salvos das minhas incertezas permanentes e agora via tua impermanência sentimental viciada pelo amor que – não adianta negar aquele sorriso – você sente por mim.

Foi assim que eu descobri o porquê de me sentir como seu futuro e o quanto isso nada tinha a ver com não estar no meu presente pelo que já tinha ficado no passado. A mania de passado era minha e tua lembrança fez da memória o lugar onde você nunca deixou de existir no meu presente. Inerte, distante, calado ou inconsciente eu nunca desisti de você, das histórias que vivemos e daquelas que ainda quero viver. E não importa o quão covarde eu tenha sido ou quão determinado tenha deixado de ser, não perdi o que você me ensinou a ter: paciência.

“Não desiste de mim”, eu disse antes de te dar um último beijo, um último abraço e partir. Meu querer vai além do teu beijo saboroso, do conforto do teu abraço, do teu corpo que eu desejo e da felicidade que me causa ter o teu amor. Meu querer limita-se ainda distante de tudo o que teu caminhar ao meu encontro representa, porque o que eu quero é tão pouco ante o que eu posso que é como te ter a dividir a cama comigo sem roupas e me ser suficiente te fazer um carinho como aquele cafuné que eu sei o quanto você gosta.

“Eu não vou desistir de você”, já estava uns metros distante quando, depois de olhar na sua direção, gritei aquelas palavras e fui o mais firme que pude ao dizê-las. Vi no teu olhar a luta contra o cansaço da espera e uns passos à frente, depois de acometido da esperança de algumas preces, prometi a mim mesmo que aquela seria a última vez que eu tinha olhado pra trás, porque eu só alcançaria você se nunca mais deixasse de olhar pra frente, mas, mais que isso, porque era reconfortante sentir-me novamente como depois de te encontrar: vivo.

Não olhar pra trás era como a última pétala da rosa. Uma dor necessária pra se fazer novamente florescer na primavera. E assim eu nunca soube se você foi vencido pelo cansaço ou caminha mais uma vez na minha direção porque lutou contra ele e venceu. Eu não sei se o amor que viciou tua impermanência sentimental conseguiu te fazer permanecer no mesmo caminho pra que na próxima primavera eu possa te encontrar – porque, até lá, tem esse mormaço do verão, a triste melancolia do outono e aquela solidão do inverno a enfrentar.

Por mais que eu deseje intensamente ter tua companhia em qualquer caminhar, dessa vez eu não posso porque, além do nosso encontro ser pra mim a linha de chegada, eu preciso atravessar todas as estações sozinho. Mas, enquanto eu precisei escolher entre me acovardar e perder ou arriscar e ganhar, você teve uma terceira opção que, sabendo agora da existência dela, me fez apressar o passo ao mesmo tempo que minha voz tenta se fazer canto – na tentativa de te alcançar antes que, ainda que não desista de mim, você desista de me esperar.

My heart would break without you, esbravejo antes de baixar o tom de voz como se acometido da vergonha de dizer em seguida que meu coração poderia não acordar mais sem você. Não há como escapar da vergonha quando se teme ser abandonado por quem abandonamos, afinal por que temor se havia consciência de todas as renúncias envolvidas nas escolhas? Você sabe o quanto de mim se perdeu nesses tempos, então há de entender meus motivos. I’m sorry, and I love you, eu levanto a voz novamente porque eu quero que o mundo saiba do meu amor.

Sem olhar pra trás, não sei do que preveni meu coração de sentir. Tenho sede e o calor que o verão trouxe nada se assemelha àquele provocado pela tua presença. A melancolia que virá no outono terá em meu mundo de dentro sua origem e, durante a solidão do inverno, será meu cobertor junto a momentos de satisfação, erros, acertos, qualidades, defeitos e outros opostos que coexistem e me dão equilíbrio. Se olhando pra frente o caminho já me soa dolorido, talvez seja mesmo aconselhável prevenir meu coração de sentir o que os olhos não puderam ver.

I’ll keep on searching for a answer, meu tom de voz alteou novamente depois que sinos e blues misturaram-se à minha canção. Eu continuo procurando respostas para uma infinidade de perguntas, algumas sobre mim, muitas sobre você, algumas muitas sobre nós. Mas, enquanto sigo caminhando na sua direção – ansioso para, se não te perceber seguido na minha também, o cansaço ter vencido apenas pela inércia dos teus passos e não por te fazer desistir de ser minha linha de chegada e me esperar – uma única resposta me é suficiente.

Uma única resposta é o que faz dos meus sonhos passíveis de tornarem-se reais; um único porquê se sobressai a outros inúmeros porquês e, desde o momento em que me vi amando você, entendi que foi esse amor o motivo que meu coração encontrou pra não parar de bater. Cause I need you more than dope, I need you more than dope, e repito quantas outras vezes forem necessárias para que você me escute. “Não desiste de mim, I need you more than dope”, eu talvez não acordasse se tivesse dito essas palavras ainda em sonho. Mas acordei.

E eu te digo agora, acordado: só consegui me enxergar como futuro quando você assim me enxergou; pelo silêncio de outrora aprendi que valor dar às tuas palavras e, principalmente, o quanto você conversava muito mais com meus olhos que suprindo minha carência auditiva. Eu te amo, nunca me canso em dizer e, mais ainda agora, deixei no caminho a música e fiz dessa declaração o mantra que quero fazer escutar tão logo seja possível te alcançar os ouvidos. Eu te amo e muito me conforta que teu coração tenha também escolhido me amar.

Daqui um tempo é outono. Breve virá também o inverno. E quando chegar finalmente a primavera, sementes germinadas florescendo em florestas, quintais e outros jardins, espero que teu querer seja ainda como quando você partiu, que teu amor tenha permanecido como quando eu me calei e àquela rosa você se agarrou pra vencer todos os obstáculos e todas as dificuldades que as estações do ano te fizeram passar na estrada reta que tinha a mim como destino, mesmo quando eu mesmo não tinha destino algum.

Quando vier a primavera, eu espero, minhas mãos vão encontrar novamente as suas, dessa vez sem despedidas para seguirmos por caminhos opostos. Na próxima primavera, se você não desistir do nosso encontro, seguiremos juntos de forma a fazermos do outro o futuro mais lindo que sequer imaginávamos ter – eu já me conformara com o fato de morrer sozinho e era sozinho que você acreditava ser melhor viver. Você se surpreendeu quando deu conta de que estava a me amar. E eu me surpreendi com seu amor.

“Eu te amo”, sigo repetindo enquanto caminho na sua direção. Por enquanto eu realmente só posso dizer alguma coisa, ainda que você não me escute. Mas, assim que a primavera se fizer pela primeira vez uma estação nossa, sem ser de um ou d'outro, mas de nós dois, será também momento de deixarmos as palavras de lado e fazer dos corpos nosso meio de comunicação. Se realmente nos encontramos ao findar o inverno, ainda que tanto tenha me pedido pra dizer algo, não é pela voz que esse algo será dito de forma que convença sua permanência.

Ainda tenho tempo, não se preocupe. Confie nas minhas palavras e não desista de mim. Quando vier a primavera, mais do que precisar - mais que necessidade, mais que qualquer coisa - é o quanto quero - e vou - te dizer do meu amor de um jeito que só teus olhos possam escutar. Você me faz sentir vivo. E o que me move na sua direção é saber que, sim, nós podemos juntos viver.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Pra ser sincero


Há meses eu alterara o percurso que me era comum para chegar ao trabalho: saía meia hora antes do que me era necessário para desviar algumas quadras, encontrar você disfarçando a cara de sono e tomar café da manhã na sua padaria preferida. Nunca me fora sacrifício abrir os olhos ao primeiro sinal do alarme - que passou a tocar uma de suas músicas favoritas - e vê-lo pela manhã era motivo suficiente para sorrir durante todo o dia. Você me fez mudar a rotina, e eu lhe era grato por isso todas as noites antes de fechar os olhos, ainda que tenhamos demorado alguns dias para dividir a mesma mesa na manhã seguinte.

Lembro da primeira vez que o encontrei na fila do caixa e de como cobrir os dois reais que faltavam do seu café transformou um agradecimento em amor à primeira vista. Eu retornava para casa naquela manhã de domingo, depois de uma noitada na casa de amigos, e a fome me obrigou a entrar naquela padaria desconhecida. Você pediu desculpas pelo incômodo, disse que tomava café ali todos os dias, mas passara alguns dias viajando e não sabia do aumento no preço dos produtos. Agradeceu pela gentileza e fez de um bom dia motivo suficiente para, a partir daquele momento, eu antecipar o alarme nos dias seguintes e te admirar todas as manhãs antes de bater ponto na firma.

Num daqueles dias você me reconheceu, insistiu que eu deixasse meu suco misto por sua conta e chamou para lhe fazer companhia na sua mesa preferida, que ficava no canto mais isolado do lugar. Era sexta-feira e eu o convidei para jantar depois do expediente. Você agradeceu pelo convite, mas tinha compromisso e, se estivesse interessado, eu até poderia lhe acompanhar no happy hour semanal com alguns amigos da época da faculdade. Sorri sem graça, mas só fui conhecer seus amigos meses depois daquele dia. Combinamos, então, irmos juntos à abertura de uma exposição artística na manhã do dia seguinte.

Naquele sábado eu soube da sua paixão pelas artes, conheci seu local preferido no parque e tivemos o que considero nosso primeiro encontro. Você disse que eu tinha um andar engraçado, encantou-se pelo meu conhecimento histórico sobre a origem daquela estátua inacabada do centro da cidade e, após trocarmos preferências musicais, foi responsável pela primeira vez em que alterei a trilha sonora que me fazia abrir os olhos todas as manhãs. Você me fez mudar a rotina e nem tinha conhecimento disso porque eu me conformava em ter apenas sua educação. E sua música preferida me fazendo acordar com alegria todos os dias.

Com o passar das semanas, nossos encontros diários foram nos tornando cada vez mais próximos, mais íntimos e eu precisei pedir uns dias de folga do trabalho para passar um tempo longe de você, porque talvez assim eu saísse da zona confortável em que aquela amizade estava me colocando. Eu queria ser mais que um amigo, afinal. Mas eu voltei antes da folga terminar, lembra? É que eu acabei percebendo que aquela zona confortável não era de todo ruim. Ruim era não te ver sorrir, não ouvir sua voz pela manhã ou à tarde, pelo telefone, como vínhamos nos comunicando regularmente.

Tinha três meses do nosso primeiro encontro e quando eu te vi do lado de fora da sala de desembarque, meu coração acelerou e eu dei o que considero a respirada mais profunda de toda a minha vida, porque precisava que ele se contentasse com o fato de que minha boca não poderia ultrapassar o limite dos seus lábios. Mas foi difícil conter o nervosismo ao te ver depois daqueles cinco dias que pareceram uma eternidade e, ao nos cumprimentarmos, acabamos errando as bochechas um do outro e seria aquela a única lembrança que eu guardaria de um beijo seu: sem ensaio, sem querer, sem paixão.

Você abaixou o rosto, envergonhado, e pediu desculpas. Eu peguei sua mão, disse que não tinha problemas e que ainda faltava um abraço naquela recepção. Você levantou o rosto, tirou do bolso meu chocolate preferido e, enquanto colocava-o no bolso lateral da minha mochila, deu-me as boas vindas sem parar de sorrir. Abrimos os braços quase que ao mesmo tempo e, depois de entrelaça-los, ficamos ali cerca de quinze a vinte segundos em silêncio até você dizer baixinho que estava com saudades e eu sentir a pele arrepiar com sua respiração. Perdi o controle, desfiz nosso abraço, levei as mãos ao seu rosto e deixei que minha razão fosse dominada pela emoção.

Não é difícil descrever como aconteceu. Você se entregou antes daquele susto tardio. Eu baixei a cabeça, envergonhado, e pedi desculpas. Você pegou minha mão, disse que não tinha problemas e que podíamos continuar abraçados enquanto selávamos aquela recepção com um beijo. Mas é difícil descrever o que eu senti. Não era a mesma felicidade de te encontrar, a mesma alegria ao acordar com o toque da sua música preferida ou o mesmo alívio de te ouvir falar. Era mais que isso, era mais que tudo isso, era diferente de tudo o que você, sem saber, já tinha me feito sentir. Se há mesmo o tal Paraíso que acreditamos, deve ser aquela a sensação de estar lá. Eu estava em paz, é o mais perto de uma definição que eu consigo chegar.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Ninguém sabe

 
 
Por trás da cena desagradável existia mais que a maioria imaginava: o assassino do gato havia sido nada mais nada menos que a própria Morte, que estava mais mal humorada que de costume naquele dia. Ela poderia ter esperado ele cruzar toda a rua ou nem deixá-lo ter iniciado a travessia, quem sabe até esperar que ele dormisse, afinal quantas outras vezes uns minutinhos a mais ou a menos tinham feito toda a diferença - e era bonito, elegante e educado o gato. Mas naquele dia não; naquele dia ela fez questão de cumprir com sua obrigação no horário exato, às quinze horas, trinta minutos e dezesseis segundos. Estava mal humorada, ninguém sabia o por quê.

Ninguém soube o por quê, também, de aquele motorista estar em velocidade tão acelerada e completamente indiferente à mancha de sangue que se formou ao redor daquele bicho morto. Porque, na verdade, ninguém tinha dado conta do que só o motorista, aos prantos, estava se perguntando: por quê ninguém teve coragem de tirar esse gato morto do meio da rua? Porque ele não o tinha feito antes? Porque a Morte, mal humorada, tinha dessas atitudes pra incomodar a Vida, que não se enxergava como corpo e por isso se valia apenas da sua existência - e isso incomodava a Morte porque, pra ela não havia nada pior que um animal morrer para outro ser humano nascer.

A Vida, quando vinha ao mundo, tinha a tudo como novidade, ia ainda aprender a viver. Ela vinha sem saber-se humana, bicho ou planta e o que quer que fosse a ela não interessava, porque o objetivo da Vida é nada mais que viver. A Morte aqui chegara com vida e foi a primeira a morrer. Ninguém sabe o que ela em vida foi e como a Vida não queria nada mais que viver, às quinze horas, trinta minutos e dezesseis segundos daquele mesmo dia o primeiro filho daquele motorista apressado respirou pela primeira vez. A Morte sempre sabe quando a Vida vem e, diferentemente da Vida, sabe antes que ela chegue quem irá morrer.
 
Era um bom moço aquele novo pai, mas a Morte era piedosa com recém-nascidos e marcava com culpa, decepção ou qualquer coisa que menos valesse alguém de perto só pra incomodar a Vida - que raramente conseguia entender o por quê de, vez ou outra, alguma coisa acontecer ao seu redor e conseguir tirar-lhe a vontade de viver. Era a Morte, recém assassina de um outro ser que não humano e disposta a transformar sua dor num espetáculo traumatizante. Porque a esperança é um atributo inerente à Vida e entre os atributos da morte não está o viver - pra ela sinônimo de esperança. A Morte há muito jaz num tempo de onde é impossível renascer.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Leveza

 
Eu quero amor,
Eu quero tudo o que for bem colorido, tudo o que for leve
Não me atrapalhe, eu tenho um objetivo
E a vida é breve...
Alice Caymmi

Eu sinto dor todos os dias. Não tem dia sim ou dia não, é sempre dia de doer alguma coisa ainda mal resolvida no meu interior: um telefonema que faltou; um encontro que ficou pra dia outro que nem como noite vingou; um atraso no serviço que a cada dia mais atrasado fica; uma pisada na bola, na jaca ou no meu próprio pé - quem já o fez sabe da dor que é. Então eu sei como é doer do lado de dentro - embora cada um viva isso em sua própria intensidade - e jamais faria pouco da dor interna de outro alguém.

Eu sei das coisas que senti e o quão ínfimos podem parecer a outros olhos os motivos para ter me sentido dessa ou daquela maneira. E, com o tempo, aprendi a não ligar pra isso, porque acabei percebendo que todos tem seus motivos ínfimos, apenas não os exergam assim. Quem tem medo de escuro fazendo chacota com quem tem medo de subir de elevador, e vice-versa. Assim foi o último ano, regado a momentos desnecessários de descrédito no sentimento alheio. Pouco mais de vinte e sete primaveras e eu vi o relógio da vida dar sinais de bateria fraca.

Lembrei dos primeiros dias de janeiro último e do quanto aquela viagem em família tinha sido capaz de mudar o modo como eu vinha enxergando o mundo nos últimos tempos. Levei nas malas todo aquele querer que eu vinha cantando desde o dia primeiro do ano - eu quero amor, eu quero tudo o que for bem colorido, tudo o que for leve; não me atrapalhe, eu tenho um objetivo e a vida é breve - e era Caymmi a Alice que cantava e era pra Bahia de Caymmi que eu estava indo. Muito axé com certeza.

Não foi. E, de uns meses pra cá, a dor que vinha casualmente começou a ser rotina diária, porque telefones, encontros, atrasos e topadas com o pé passaram a ser também rotina diária. Se não era um, era outro e nunca faltava opção pra doer, porque meu querer, minhas vontades e meu bem estar eram desculpas que não justificavam meu comportamento. Talvez tenha sido assim vez ou outra, mas só eu sei do peso que carreguei nas costas todas as vezes em que passei pela porta do meu quarto em direção à rua quando tudo o que eu queria era ficar.

Leve, tudo o que eu queria ficar desde que aquele primeiro de janeiro passara e no quesito leveza de certo que 2015 não obteve nota máxima. Fiquei triste e decepcionado, claro. Beirando os trinta anos e incapaz de ser firme ao impor minhas vontades - aí sim arrumando desculpas que não justificavam meu comportamento, mas eram justificadas pelo descrédito à minha realidade e que eu provavelmente nunca tentarei fazê-la melhor ou pior que a de outra pessoa. Ela só é diferente e, depois de um tempo eu consegui perceber, aquela dor era porque eu estava fazendo diferente também.

Eu sinto dor todos os dias. Não tem dia sim ou dia não, é sempre dia de doer alguma coisa ainda mal resolvida no meu interior, mas do mesmo jeito que a dor se fez rotina, a leveza também passou a me visitar diariamente. Doía aqui, doía ali, mas quantos outros males não vem pro nosso bem? É egoísta, mas outra coisa não haveria de ser: antes de me sentir leve, achei que a dor fosse culpa, resultante de algumas atitudes com doses de egoísmo. Talvez tenha sido assim vez ou outra também, mas só eu sei de quão leve tenho me sentido desde então.

Logo estarei de férias e pretendo viver essa folga de alguns dias um pouco longe daqui. Não cruzarei fronteira de estado ou sequer município, mas os quilômetros distante são suficientes pra impossibilitar uma conexão com a internet e, por consequência, a falta de contato com muitas das coisas que atravancam a passagem de outras mais leves, como navegar pelo Facebook e me perder completamente daquilo que eu estava decidido a fazer. Meu desejo era que num desses dias a chuva se fizesse presente, mas, como tantos outros, esse querer não é poder. Não depende de mim.

Com chuva ou sem chuva, uma coisa é certa: eu quero amor, eu quero tudo o que for bem colorido, tudo o que for leve. Ainda não posso dizer com absoluta certeza qual o meu objetivo, mas saber isso me é indiferente quando ainda estou em busca e nem sei se um dia vou encontrá-lo. Isso depende de mim e do quão leve eu vou estar para aceitá-lo quando chegar, então é primordial que a leveza se estenda ainda por um bom tempo. Eu continuo sentindo dor todos dias, por fazer diferente de tantos outros dias. Mas quanto mais leve eu fico, menos dor eu sinto. Eu quero tudo que for leve e mais ainda me sentir assim.

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Rai

 

Estávamos eu e um amigo conversando sobre onde tem sucesso aqueles que procuram a felicidade, quando um de seus argumentos me fez recordar algo que corroborova com a afirmação: ao declarar-se humilde, vai-se embora a humildade. Acho que podemos, sim, reconhecê-la em nós - tal qual deveríamos reconhecer nossos talentos, aptidões e capacidades, o que não significa que devemos fazer dela tentativa de autopromoção.

Raimunda é o nome dela, uma mulher que trabalhava com os serviços gerais do meu local de trabalho e com quem não tinha um contato tão frequente como com tantos outros terceirizados com quem divido o horário de expediente. Até aquele dia eu nem sabia o seu nome, na verdade. Nossos encontros do dia-a-dia eram os cumprimentos rotineiros - bom dia, boa tarde - e algumas poucas coversas que não exigiam nos chamarmos pelo nome.

Eu estava a poucos meses do lançamento do meu livro e aquele período de alguns meses que o antecedeu não foi dos melhores. Nem era estima baixa, era falta dela mesmo. Meu mundo tinha virado do avesso e naquele dia exatamente eu me encontrava completamente descrente de qualquer valor, fosse do mundo lá fora, fosse do mundo aqui dentro. A Raimunda apareceu num dos meus intervalos de fumante, eu sentado na escada e ela rumando pro térreo, já fim de expediente.

- Eu gosto tanto de ti, sabia?
- Oi? - eu sorri abobalhado quando ela deu meia volta alguns degraus depois.
- Eu tava até falando pra tua irmã um dia desses, que tu ficou de férias, né?
- Agora? Não, eu tirei férias em janeiro... - era março.
- Pois é, aí eu encontrei tua irmã no corredor - ela continuou, enquanto olhava pro papel com que brincava de dobrar com as mãos, aparentemente acanhada pelo que estava falando - e perguntei se tu tinha saído daqui, porque fazia tempo que eu não te via e senti sua falta.
- Mas gente - e eu queria um papel agora pra dobrar nos dedos enquanto sentia minhas bochechas corarem.
- É, porque... tu trata a gente como igual, sabe? Eu acho lindo a sua humildade, fala com todo mundo...

Não consigo me recordar de outro momento na vida em que aquela palavra me atingiu o peito com tanta intensidade. Aquele momento durou cerca de alguns segundos, porque logo me veio a culpa de, depois de saber-se tão bem visto aos olhos de outra pessoa, eu precisar olhar para o crachá que ela carregava pra saber o seu nome. Raimunda, eu li. Rai, foi assim que eu passei a chamá-la fosse independentemente da efemeridade de nossos encontros.

No entanto, ainda que por tão pouco tempo, eu pude ver, com o valor do mundo lá fora, que ainda tinham alguns trocados de valor no mundo aqui dentro. Por reconhecer nos outros a humildade eu sabia reconhecer em mim sua existência, mas não consigo recordar de algum momento anterior àquele - e creio que não haverá posterior - em que eu pude sentir verdadeiramente o que era ser humilde, não por sê-lo, mas porque aquelas palavras conseguiram me fazer sentir o que eu senti.

Enquanto escrevo me pergunto por onde andará a Rai, que há muitos meses não vejo. E por onde andará a humildade que em mim ela exergou enquanto escrevo esse texto. Talvez seja ela como a felicidade, um estado de espírito e não condição de vida: não se é humilde, se está humilde; afinal declarar-se assim não anula a existência da humildade em momentos outros, seja no passado, seja no futuro - sem falsa modéstia, claro.

Por poucos seguntos - entre as palavras dela, um sorriso acanhado e a culpa de não saber o seu nome - eu não lhe disse que era exagero ou concordei a me gabar, e tudo o que eu consegui dizer foi que eu não sabia o que dizer além de muito obrigado. Nos olhos surgiram algumas lágrimas, fruto do coração acelerado pego de surpresa e sem qualquer pretensão. Hoje, tantos meses depois, veio em mim essa lembrança que, no fim das contas, é também uma lição.

Há muito passei da fase de não me importar com o que os outros pensam de mim. Não que eu me importe, mas antes eu sempre me importava. Hoje o às vezes acompanha a importância e vez ou outra eu não ligo mesmo se não curtiram meu bigode ou se incomodaram com meu macacão. O fato é que, independentemente da importância que você dá ou não para aquilo que dizem sobre você, existem algumas coisas que ninguém além dos outros vai poder dizer.

Tem quase um ano daquele encontro com a Raimunda. Relembrá-lo me fez enxergar o quanto, pelo menos até ali, eu segui meu caminho pela direção certa, independentemente dos desvios que fiz. Foi como voltar no tempo pra acalmar o coração e perceber o quanto aquilo que ela disse conseguiu fazer brotar um sorriso quando minh'alma estava tão entristecida. Aqueles poucos segundos que antecederam a culpa trouxeram também um cadinho de felicidade.

Então estávamos eu e um amigo conversando sobre onde tem sucesso aqueles que procuram a tal felicidade e, depois de visitar aquela lembrança - e apesar de corroborar com um de seus argumentos - eu percebi que a Rai não só tinha transformado o meu dia, como deixado pra mim uma lição pra vida toda: não adianta procurar, felicidade se encontra; pode vir de dentro de você, pode ser que outro alguém faça você sentir.

Ninguém pode ser feliz por ninguém. Mas sempre tem alguém que pode fazer você feliz. Não perca a humildade. Ser humilde é semear amor e colher felicidade.

domingo, 24 de janeiro de 2016

Dar um tempo

 

É sempre bom dar um tempo. Ainda que conectado nas redes sociais e de olhos grudados na tela do celular, sempre tem um momento em que você direciona o olhar para o que tem à frente – o celular é o mesmo, mas a moldura quase invisível dele não é aquela com a qual se está acostumado. Pelo menos comigo é assim que acontece nesses momentos de introspecção virtual: a voz de uma cantora de rua, uma árvore cheia de filtros dos sonhos pendurados e até aquele guaraná que você não saboreava há muito tempo se sobressaem na minha atenção e, pasmem!, eu esqueço até de tirar fotos.

E dar um tempo daqui não é só bom como pode servir como uma experiência de vida incrível, porque dá pra conhecer pessoas que, num dia-a-dia normal, não seria possível nem encontrar; os relacionamentos mais íntimos são colocados à prova da intimidade de dividir o período de férias, afinal sair da redoma confortável que é a nossa rotina para envolver-se na rotina calma, atribulada ou divertida de um outro alguém é algo que, momento ou outro, pode causar certo desconforto, o que é comum em qualquer experiência incrível. Assim como a impulsividade.

Pouco mais de dois anos atrás, de férias em São Paulo, numa das minhas saídas em minha própria companhia, estava sentado num bar, em mesa vizinha à de um casal que conversava sobre algo que acontecera tempos antes. Eu não lembro de nomes, motivos ou outros detalhes da conversa – apesar de tê-la ouvido quase toda – mas pedi ao garçom uma caneta e alguns pedaços de papel. “A cabeça que você tem hoje tem a ver com aquele momento”, eu escrevi entre aspas como se fossem elas capazes de levar a mensagem até a mulher que dizia não querer ter vivido um momento do passado.

Estava a um cigarro de ir embora quando levantei e pedi licença aos dois para entregar a ela aquelas pequenas folhas para onde tinha transcrito o que se seguiu àquela frase. Fiquei ali, entre trago e outro, ansioso pela reação após a leitura da última palavra – e ela lia em voz alta para que ele ouvisse.

"Se não tivesse sido assim, você não iria querer mudar o passado. Então, pense bem, foi tão ruim assim? E, se foi, você estaria tão madura e consciente como está hoje? Já ouvi dizer: ‘não existe amor em SP’. Amor é liberdade. É deixar-se livre para viver. Aqui é como gaiola aberta sem fechadura na porta. Porque o importante é viver. E, se você não tivesse vivido, e não tivesse aprendido, aquele momento não seria visto como você vê hoje. ‘Aquele momento’. Sempre tem aquele momento. E, se a gente se arrepende dele, é porque valeu muito à pena que ele fosse assim”.

Ganhei um abraço e um pedido de licença para ir ao banheiro. Ficamos eu e ele sozinhos, e então soube que eles tinham se conhecido naquele dia, ou dias antes, ou sei lá. Na verdade não se faz necessário lembrar quanto tempo eles tinham de relacionamento, porque, tal qual começou, estava prestes a subitamente acabar. Ele viajava de férias após um recente término de namoro, ela viajando à trabalho e permitindo-se sentir a liberdade que era estar longe de um relacionamento que há meses a sufocava. Eram como eu: viam naquela rápida passagem por São Paulo a oportunidade de se despirem completamente do medo, vergonha e receio dos olhares tortos alheios.

Dar um tempo do nosso lugar, por si só, já é uma verdadeira experiência incrível.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

É mágica


Enquanto 2015 encerrava, eu resolvi encerrar junto com ele e deixar para 2016 só o que realmente me fizesse bem. Aos quarenta e cinco do segundo tempo, sem prorrogação, defendi a bola e quis fazer gol a gol, porque a diferença enorme de placar permitia que eu a chutasse sem culpa: era impossível que o saldo positivo se sobressaísse ao negativo, eu só não queria desistir. Além do que, meu desafio era difícil - acertar entre os metros quadrados da trave e não naquele vão sem torcida - mas nem de longe impossível - afinal força eu tinha e o tempo pra bola cruzar todo o campo era suficiente também. 

Naqueles últimos dias de 2015 eu arrisquei o desconhecido sem medo de me perder no mundo novo que abri as portas do meu pra conhecer. Em comum apenas o universo onde há anos tínhamos fincado morada involuntariamente. Até que eu, atrevido como sou - e findando já um ano de muita lição, mas pouca saudade - voluntariamente busquei em minha biblioteca os livros de história e fui lá no outro mundo perguntar se não existia a possibilidade de uma permuta de conhecimentos. Tantos admiráveis e reais mundos novos que eu ainda nem conheço por aí, mal não haveria em arriscar esse e ver quão admiráveis podiam ser sua língua, seu povo, sua cultura, suas histórias. Um mundo novo dificilmente não me encanta. São raras as vezes que minha biblioteca não recebe livros das histórias de outros lugares desse mesmo universo meu. Mas com que frequência os livros que retiro dela não são recebidos nesses mesmos lugares?

Pouco tempo restava e, ainda que fosse possível fazer um último gol, minha derrota era inevitável: eu nunca poderia ganhar aquele jogo aos quarenta e cinco do segundo tempo e não ganhei. Arriscar-se a conhecer mundos novos é arriscar-se também a inexistência do interesse alheio pelo seu. E quem, como eu, tem dificuldade em aceitar algumas de suas próprias histórias geralmente acredita neste último risco. Veio derradeira virada de ano e foi então que 2016 trouxe junto com ele aquelas histórias últimas do ano que findara, o que me fez lembrar do Teatro Mágico e daquela música sobre essas pessoas que, enquanto estiverem do lado de lá, nos mantém orientados do lado de cá - tipo um vizinho do outro lado da rua que te ajuda a levantar - e em parte ela diz: o fim é belo e incerto, depende de como você vê.

Tantos dias já daquele chute último, eis que anunciam em rede mundial que foi gol sim, mas foi gol contra. A defesa foi além do limite da trave e não fosse aquela análise minunciosa teria ficado por aquilo mesmo, gol a mais gol a menos não ia fazer diferença mesmo. Mas fez. A bola atravessou o campo, dançou no ar, foi um gol bonito. E há poucas horas chegou correspondência daquele mundo novo, dizendo que tinham histórias outras de lá ainda para serem contadas e talvez no mundo meu também tivesse e seria bom que outros encontros daquele houvessem. A cena repete, a cena se inverte, enchendo a minha alma daquilo que outrora eu deixei de acreditar, o Teatro canta antes do fim. Do chute um gol, do risco um futuro que, se é futuro, não tem fim. E, da forma que eu vejo, a incerteza do fim é o que torna tudo ainda mais belo.

domingo, 3 de janeiro de 2016

O mosqueteiro


Hoje um garoto me surpreendeu, veja só, que beleza! Mais novo que eu me fazendo pensar sobre a época dele - quando minha - e o quanto aquilo poderia ter feito sentido e muitas outras coisas que deveriam ter sido feitas nessa época que, ao ouví-lo, fiquei feliz por ser ainda a época dele. Esse garoto, talvez um homem, vai saber, bateu na minha cara quando esbravejou quase silenciosamente que o nosso maior poder é o tal querer que tão preconceituosamente diminuímos perante o outro.

"Assim como tudo na minha vida. Eu até gosto de ficar bêbado, mas não gosto de beber. Não tenho vontade de beber, não quero beber, oras..." ele disse e riu satisfeito. Um independente da própria independência, eu ri. Era fantástico pensar sobre aquilo enquanto ouvia sobre um telescópio que, mais que as estrelas, me faziam enxergar o universo aqui de dentro, tão cheio de poder e com receio de querer. Um garoto, veja só que beleza.

Tem dias que esse garoto apareceu, é verdade. E tem dias que ele traz, a cada vinda, uma ideia sem ineditismo, mas antes um significado sem signo, um pensamento ainda não traduzido. Foi assim com aquela ideia do outro dia que escrever tem que ser divertido. "Escrever é diversão, cara" eu sabia, mas só sabia dizer que a inspiração me faltava sem um exato por quê para justificar.

Um dia após o outro, tal qual fora o ano que passou desejei pro ano a passar. Num desses dias, veja só que beleza, o garoto de uma época minha que já foi veio, sem querer, lembrar-me que não findam as épocas quando duas diferentes se encontram. Um garoto de época outra encontrando esse garoto de época outra, que se fazem a mesma porque, ele disse oras, querer é poder até quando eu não quero poder.

São outras épocas, eu quero acreditar. "Seis anos não é nada" ele disse dois dias antes de justificar tal afirmação. Basta querer, afinal. Veio esse garoto, tem dias, me contar causos corriqueiros da vida só pra mostrar que, tão simples quanto querer e poder, está mesmo o viver. Viver bem, ele disse nas entrelinhas do que me dizia e eu precisava escutar: viver bem, e bem consigo mesmo.