segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Louca, do bem e jardineira


Eu não lembro quando ela fumou o primeiro cigarro. Mas nunca vou esquecer todas as vezes em que nossos encontros se tornaram verdadeiras aventuras para mantermos guardados nossos segredos de nicotina. Compartilhamos experiências desde muito pequenos e, se não loucas pelo nosso atrevimento de conhecer o que nos era proibido, foram loucas pela obviedade ridícula ou pela tanta disponibilidade de tempo gasto para vive-las. Eu não lembro quando ela fumou o primeiro cigarro e ela não estava lá quando eu fumei pela primeira vez.

Mas nunca precisamos da lembrança para conhecer as loucuras um do outro. E o que eu descobri, conversando com ela algum tempo atrás, é que tem essas vezes que prefiro não estar lá quando sua realidade é invadida pela loucura – ou eu poderia ter impedido muitos atos loucos e impulsivos que fazem dela merecedora de lugar reservado no paraíso. “É uma loucura, sim”, ela me disse tão logo caracterizei assim várias de suas atitudes, “mas é uma loucura boa”.

É, é por isso que é louco, na verdade. Dificilmente consigo ser testemunha da existência de um ser humano que, ciente – por experiência própria – das dificuldades, preconceito, críticas e mais dificuldades ainda, prefira arriscar-se novamente a se acovardar diante deles, em prol da garantia de que um inocente não seja condenado ao cárcere. Um cárcere do qual ela mesma conseguiu escapar. Desde criança ela é louca. E desde criança ela é livre.

Uma vez ouvi o personagem de um programa de TV dizer que não existia atos de altruísmo, porque até mesmo um ato altruísta estava eivado da sensação de bem-estar que produzia em seu autor. Pode ser que assim realmente o seja, mas sou do tipo que acredita na existência de uma exceção para todas as regras – inclusive essa, mas não é o caso. E tem esses seres – humanos errantes e de almas tão puras – que não fazem o bem para sentirem-se bem, mas simplesmente por serem do bem.

Ela é louca porque resolveu criar uma galinha que, antes da sua mudança, já residia na casa em que sua família foi morar. “A gente se apega”, ela disse como se quisesse complementar aquela história da raposa sobre sermos responsáveis por aquilo que cativamos. Ela é louca porque, ainda que pense primeiramente nela, se segundamente seu pensamento for no outro, do primeiro ela não irá mais lembrar. Ela é louca porque, ao contrário de mim, ao invés de buscar o próprio amor, ela está fazendo-o nos outros brotar.

Amor-próprio, acredito eu, foi o que a fez livre ainda criança. Por muito tempo ela só quis mesmo que a enxergassem do mesmo jeito que conseguia se enxergar: errante, mas de pura alma. Mas, do bem como sempre foi, ela um dia percebeu que existiam tantos outros que não tinham nem a liberdade de saberem-se humanos, quanto mais o olhar de quem queriam um mínimo de dedicação. “Vou ser jardineira”, ela disse aos risos, “é uma loucura boa”.

Construiu um jardim tendo a si mesma como limite, onde juntou sementes desconhecidas, abandonadas e esquecidas – contrariando as dificuldades, preconceito, críticas e mais dificuldades ainda que outros jardineiros usaram para tentar persuadi-la da ideia – convertendo a intensidade com que queria ser enxergada antes na fé com que enxergava cada um daqueles brotinhos, fazendo com que, pouco a pouco, um a um eles se transformassem em flores belas e de perfume inigualável.

Era uma jardineira louca, todos diziam. Mas era uma loucura boa aquela dela, todos sabiam. Eu não lembro quando ela fumou o primeiro cigarro. E nós nunca precisamos da lembrança para conhecer as loucuras um do outro. No entanto eu lembro da primeira rosa que brotou naquele jardim tão cheio de amor que ela construiu durante um dos seus maiores atos de loucura. E eu não só lembro como tenho comigo essa rosa como a primeira que plantei no meu jardim. Ela é louca, porque só sendo assim para dar a um descuidado como eu o primeiro botão de rosa que ela colheu.

“Um dia essa tua felicidade passa”, ela disse enquanto eu sorria abobado com aquele jarro nas mãos, “cuidar de uma flor é mais que admirar a beleza dela na janela”. E ela não só foi a primeira como a única rosa plantada naquele jardim que secou antes mesmo que qualquer semente plantada por mim germinasse. Devolvi a rosa quase murcha e ela disse que tinha me avisado que admirar beleza não é cuidar de flor, mas que estava errada quando à minha felicidade. “Eu sei que você é descuidado, mas eu acredito o que te faz feliz é justamente o que faz você se importar. E, bem, é melhor você cuidar dos bilhetes que vão nos meus buquês e deixar as flores comigo, afinal você nunca foi um bom jardineiro né? ”.

Vez ou outra eu apareço para visitar minha rosa. Ela nunca mais murchou. Porque, louca ou não, a melhor jardineiro do mundo é ser que erra, mas de pura alma. E, do bem, não teria qualquer outro capaz de cuidar de flores tão bem quando ela.

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