domingo, 27 de setembro de 2015

Tatuagem


Uma vez eu fiz pacto de sangue com alguns amigos da escola. Furamos as pontas dos dedos com a promessa de sermos amigos para sempre. Éramos cerca de dez pré-adolescentes, entre as sétima e oitava série, unindo os indicadores sangrando como se aquilo fosse a coisa mais importante do mundo. Sim, naquele momento ela era realmente a coisa mais importante do mundo. Regra geral é apenas uma lembrança que temos: está lá, mas não está à vista. Aquele pequeno furo de alfinete não me persegue no espelho ou atrai o olhar dos outros, o que pra mim não tira o significado e a vontade de contar sobre ele, afinal fomos pré-adolescentes bem felizes – eu acho.

Foi que outro dia eu e uma amiga trocamos ideias quanto aos desenhos que faríamos para registrar no corpo aquela música que voz e ouvidos fizeram ser nossas e era a primeira vez que eu pensava sobre isso, porque ela tinha puxado o assunto. Depois da busca fracassada de uma imagem que representasse uma de minhas ideias, eu tentei explicar em palavras e o assunto encerrou. Pra nós, não pra mim. Veio então aquele pensamento envolto numa interrogação: eu realmente faria uma tatuagem com ela? Eu não sei explicar direito e minhas palavras podem soar bem insensíveis e egoístas, mas essa é uma pergunta que define bem a intensidade daquilo que eu sinto por algumas pessoas.

Isso e o desafio que seria àqueles que me botaram no mundo, afinal é por causa eles – “de outro tempo” – que até hoje eu não me risquei para homenagear eles mesmos. Eu não seria expulso de casa e eles me amariam do mesmo jeito – mesmo motivo pela qual eu irei um dia desafiá-los mesmo assim – mas hoje, no presente, não é urgência minha nem por capricho e nem por desejo. Então duas coisas aparentemente inversas proporcionalmente são as duas únicas coisas capazes de medir – vejam bem: em intensidade, não em números, se é que é possível entender – as minhas relações. Insensível e egoísta? Talvez. Mas a realidade nunca foi cem por cento agradável, todos sabem.

Eu não dormi pensando sobre aquilo e nem passei os últimos dias lembrando daquela pergunta ou desse assunto. Talvez ela não tenha pensado sobre isso também – e espero que me perdoe se, ao contrário de mim, tenha gasto mais tempo idealizando o que nos representaria na pele, porque hoje ela mesma foi causa da resposta daquela pergunta e dessa minha percepção sobre o quão intenso é aquilo que eu sinto por algumas pessoas. E não é só amor, sabe? Não tem a ver só com o fato de eu oferecer minha vida em troca da dela, porque o amor faz isso comigo. Mas só amor não me faz cogitar tatuar o corpo. Amor é lindo, pode mover o mundo de algumas pessoas e é tema cativo das minhas palavras, mas toda regra tem exceção e, pra mim, a do amor é a tatuagem.

Pode ser uma lembrança não lembrada muito específica – ou até lembrada, mas não específica, mas o fato é que a resposta para aquela pergunta de mim nada mais pode tirar que um “sim”. Eu faria uma tatuagem com ela, assim como eu faria uma tatuagem com... Com quem? Com quem eu faria uma tatuagem? Eu não sei dizer que outro requisito, além do amor, é necessário. Porque, enquanto buscava respostas para essa outra pergunta, eu percebi que era um amor muito intenso que fazia o coração bater por aquele, por aquela, por um outro ali, uma outra aqui, mas não era ele suficiente para me dar coragem de encarar a tinta marcando minha pele – o amor também tem lá suas covardias, é preciso aceitar.

Eu não vou dizer quantas pessoas – muito menos quais - substituíram a última palavra da pergunta “eu faria uma tatuagem com fulano? ”. Mas o fato é que foram poucas as vezes em que eu realmente considerei a possibilidade de marcar a pele com qualquer coisa que representasse qualquer outro corpo além do meu, apesar de já ter conversado sobre isso tantas vezes. E vem aí então a consequência maior de tudo isso: eu não minto sobre o amor, mas eu minto sobre tatuagem. Não aquela mentira inocente, que a gente diz boa parte das vezes em que acredita estar vivendo algo que vai ser pra sempre. Nem aquela mentira dolosa, consciente que o tempo tá sendo gasto com algo que o outro quer de verdade e a preocupação em agradá-lo.

Eu minto porque, regra geral, um pacto de sangue não vai estar lá no futuro. Uma tatuagem vai. E é como se, aqui dentro, existisse um “Manual Sobre Tatuagens” anexo ao “Manual Completo Sobre Como Fazer da Sinceridade a Base de Uma Amizade”, mas em momento algum parte dele. Raras são as vezes em que a iniciativa sobre esse assunto parte de mim – talvez as únicas que meus interlocutores podem já saberem-se conscientes do meu sim – mas em nenhuma delas (não recordo agora, pelo menos) demonstrei qualquer desinteresse sobre o assunto. Porque, me desculpem a franqueza, eu não só minto, eu minto bem sobre tatuagens, oras.

Sei que muitos dos meus amigos não passam dos trechos na página do Facebook ou sequer leem as coisas que escrevo, mas se for um deles e ficar curioso para saber o que tatuaríamos juntos ou porque eu não faria uma tatuagem com você, tenha isso em mente: eu estarei sendo forçado a mentir, porque a tatuagem não só é minha exceção na regra do amor, mas está para ele tal qual o erro para nós, então deixo-lhes de antemão minhas desculpas. Porque vou desbravar a criatividade buscando inspiração para tornar visual o motivo pela qual é óbvio que eu faria uma tatuagem com você. Eu poderia usar minha ignorância como desculpa, mas – ainda que ela seja – isso agora seria como uma mentira baseada em outra mentira, o que não tem a mesma consequência para mim tal qual para o ladrão que rouba ladrão.

Nenhum comentário:

Postar um comentário