quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Ninguém sabe

 
 
Por trás da cena desagradável existia mais que a maioria imaginava: o assassino do gato havia sido nada mais nada menos que a própria Morte, que estava mais mal humorada que de costume naquele dia. Ela poderia ter esperado ele cruzar toda a rua ou nem deixá-lo ter iniciado a travessia, quem sabe até esperar que ele dormisse, afinal quantas outras vezes uns minutinhos a mais ou a menos tinham feito toda a diferença - e era bonito, elegante e educado o gato. Mas naquele dia não; naquele dia ela fez questão de cumprir com sua obrigação no horário exato, às quinze horas, trinta minutos e dezesseis segundos. Estava mal humorada, ninguém sabia o por quê.

Ninguém soube o por quê, também, de aquele motorista estar em velocidade tão acelerada e completamente indiferente à mancha de sangue que se formou ao redor daquele bicho morto. Porque, na verdade, ninguém tinha dado conta do que só o motorista, aos prantos, estava se perguntando: por quê ninguém teve coragem de tirar esse gato morto do meio da rua? Porque ele não o tinha feito antes? Porque a Morte, mal humorada, tinha dessas atitudes pra incomodar a Vida, que não se enxergava como corpo e por isso se valia apenas da sua existência - e isso incomodava a Morte porque, pra ela não havia nada pior que um animal morrer para outro ser humano nascer.

A Vida, quando vinha ao mundo, tinha a tudo como novidade, ia ainda aprender a viver. Ela vinha sem saber-se humana, bicho ou planta e o que quer que fosse a ela não interessava, porque o objetivo da Vida é nada mais que viver. A Morte aqui chegara com vida e foi a primeira a morrer. Ninguém sabe o que ela em vida foi e como a Vida não queria nada mais que viver, às quinze horas, trinta minutos e dezesseis segundos daquele mesmo dia o primeiro filho daquele motorista apressado respirou pela primeira vez. A Morte sempre sabe quando a Vida vem e, diferentemente da Vida, sabe antes que ela chegue quem irá morrer.
 
Era um bom moço aquele novo pai, mas a Morte era piedosa com recém-nascidos e marcava com culpa, decepção ou qualquer coisa que menos valesse alguém de perto só pra incomodar a Vida - que raramente conseguia entender o por quê de, vez ou outra, alguma coisa acontecer ao seu redor e conseguir tirar-lhe a vontade de viver. Era a Morte, recém assassina de um outro ser que não humano e disposta a transformar sua dor num espetáculo traumatizante. Porque a esperança é um atributo inerente à Vida e entre os atributos da morte não está o viver - pra ela sinônimo de esperança. A Morte há muito jaz num tempo de onde é impossível renascer.

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