sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Pra ser sincero


Há meses eu alterara o percurso que me era comum para chegar ao trabalho: saía meia hora antes do que me era necessário para desviar algumas quadras, encontrar você disfarçando a cara de sono e tomar café da manhã na sua padaria preferida. Nunca me fora sacrifício abrir os olhos ao primeiro sinal do alarme - que passou a tocar uma de suas músicas favoritas - e vê-lo pela manhã era motivo suficiente para sorrir durante todo o dia. Você me fez mudar a rotina, e eu lhe era grato por isso todas as noites antes de fechar os olhos, ainda que tenhamos demorado alguns dias para dividir a mesma mesa na manhã seguinte.

Lembro da primeira vez que o encontrei na fila do caixa e de como cobrir os dois reais que faltavam do seu café transformou um agradecimento em amor à primeira vista. Eu retornava para casa naquela manhã de domingo, depois de uma noitada na casa de amigos, e a fome me obrigou a entrar naquela padaria desconhecida. Você pediu desculpas pelo incômodo, disse que tomava café ali todos os dias, mas passara alguns dias viajando e não sabia do aumento no preço dos produtos. Agradeceu pela gentileza e fez de um bom dia motivo suficiente para, a partir daquele momento, eu antecipar o alarme nos dias seguintes e te admirar todas as manhãs antes de bater ponto na firma.

Num daqueles dias você me reconheceu, insistiu que eu deixasse meu suco misto por sua conta e chamou para lhe fazer companhia na sua mesa preferida, que ficava no canto mais isolado do lugar. Era sexta-feira e eu o convidei para jantar depois do expediente. Você agradeceu pelo convite, mas tinha compromisso e, se estivesse interessado, eu até poderia lhe acompanhar no happy hour semanal com alguns amigos da época da faculdade. Sorri sem graça, mas só fui conhecer seus amigos meses depois daquele dia. Combinamos, então, irmos juntos à abertura de uma exposição artística na manhã do dia seguinte.

Naquele sábado eu soube da sua paixão pelas artes, conheci seu local preferido no parque e tivemos o que considero nosso primeiro encontro. Você disse que eu tinha um andar engraçado, encantou-se pelo meu conhecimento histórico sobre a origem daquela estátua inacabada do centro da cidade e, após trocarmos preferências musicais, foi responsável pela primeira vez em que alterei a trilha sonora que me fazia abrir os olhos todas as manhãs. Você me fez mudar a rotina e nem tinha conhecimento disso porque eu me conformava em ter apenas sua educação. E sua música preferida me fazendo acordar com alegria todos os dias.

Com o passar das semanas, nossos encontros diários foram nos tornando cada vez mais próximos, mais íntimos e eu precisei pedir uns dias de folga do trabalho para passar um tempo longe de você, porque talvez assim eu saísse da zona confortável em que aquela amizade estava me colocando. Eu queria ser mais que um amigo, afinal. Mas eu voltei antes da folga terminar, lembra? É que eu acabei percebendo que aquela zona confortável não era de todo ruim. Ruim era não te ver sorrir, não ouvir sua voz pela manhã ou à tarde, pelo telefone, como vínhamos nos comunicando regularmente.

Tinha três meses do nosso primeiro encontro e quando eu te vi do lado de fora da sala de desembarque, meu coração acelerou e eu dei o que considero a respirada mais profunda de toda a minha vida, porque precisava que ele se contentasse com o fato de que minha boca não poderia ultrapassar o limite dos seus lábios. Mas foi difícil conter o nervosismo ao te ver depois daqueles cinco dias que pareceram uma eternidade e, ao nos cumprimentarmos, acabamos errando as bochechas um do outro e seria aquela a única lembrança que eu guardaria de um beijo seu: sem ensaio, sem querer, sem paixão.

Você abaixou o rosto, envergonhado, e pediu desculpas. Eu peguei sua mão, disse que não tinha problemas e que ainda faltava um abraço naquela recepção. Você levantou o rosto, tirou do bolso meu chocolate preferido e, enquanto colocava-o no bolso lateral da minha mochila, deu-me as boas vindas sem parar de sorrir. Abrimos os braços quase que ao mesmo tempo e, depois de entrelaça-los, ficamos ali cerca de quinze a vinte segundos em silêncio até você dizer baixinho que estava com saudades e eu sentir a pele arrepiar com sua respiração. Perdi o controle, desfiz nosso abraço, levei as mãos ao seu rosto e deixei que minha razão fosse dominada pela emoção.

Não é difícil descrever como aconteceu. Você se entregou antes daquele susto tardio. Eu baixei a cabeça, envergonhado, e pedi desculpas. Você pegou minha mão, disse que não tinha problemas e que podíamos continuar abraçados enquanto selávamos aquela recepção com um beijo. Mas é difícil descrever o que eu senti. Não era a mesma felicidade de te encontrar, a mesma alegria ao acordar com o toque da sua música preferida ou o mesmo alívio de te ouvir falar. Era mais que isso, era mais que tudo isso, era diferente de tudo o que você, sem saber, já tinha me feito sentir. Se há mesmo o tal Paraíso que acreditamos, deve ser aquela a sensação de estar lá. Eu estava em paz, é o mais perto de uma definição que eu consigo chegar.

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