terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Rai

 

Estávamos eu e um amigo conversando sobre onde tem sucesso aqueles que procuram a felicidade, quando um de seus argumentos me fez recordar algo que corroborova com a afirmação: ao declarar-se humilde, vai-se embora a humildade. Acho que podemos, sim, reconhecê-la em nós - tal qual deveríamos reconhecer nossos talentos, aptidões e capacidades, o que não significa que devemos fazer dela tentativa de autopromoção.

Raimunda é o nome dela, uma mulher que trabalhava com os serviços gerais do meu local de trabalho e com quem não tinha um contato tão frequente como com tantos outros terceirizados com quem divido o horário de expediente. Até aquele dia eu nem sabia o seu nome, na verdade. Nossos encontros do dia-a-dia eram os cumprimentos rotineiros - bom dia, boa tarde - e algumas poucas coversas que não exigiam nos chamarmos pelo nome.

Eu estava a poucos meses do lançamento do meu livro e aquele período de alguns meses que o antecedeu não foi dos melhores. Nem era estima baixa, era falta dela mesmo. Meu mundo tinha virado do avesso e naquele dia exatamente eu me encontrava completamente descrente de qualquer valor, fosse do mundo lá fora, fosse do mundo aqui dentro. A Raimunda apareceu num dos meus intervalos de fumante, eu sentado na escada e ela rumando pro térreo, já fim de expediente.

- Eu gosto tanto de ti, sabia?
- Oi? - eu sorri abobalhado quando ela deu meia volta alguns degraus depois.
- Eu tava até falando pra tua irmã um dia desses, que tu ficou de férias, né?
- Agora? Não, eu tirei férias em janeiro... - era março.
- Pois é, aí eu encontrei tua irmã no corredor - ela continuou, enquanto olhava pro papel com que brincava de dobrar com as mãos, aparentemente acanhada pelo que estava falando - e perguntei se tu tinha saído daqui, porque fazia tempo que eu não te via e senti sua falta.
- Mas gente - e eu queria um papel agora pra dobrar nos dedos enquanto sentia minhas bochechas corarem.
- É, porque... tu trata a gente como igual, sabe? Eu acho lindo a sua humildade, fala com todo mundo...

Não consigo me recordar de outro momento na vida em que aquela palavra me atingiu o peito com tanta intensidade. Aquele momento durou cerca de alguns segundos, porque logo me veio a culpa de, depois de saber-se tão bem visto aos olhos de outra pessoa, eu precisar olhar para o crachá que ela carregava pra saber o seu nome. Raimunda, eu li. Rai, foi assim que eu passei a chamá-la fosse independentemente da efemeridade de nossos encontros.

No entanto, ainda que por tão pouco tempo, eu pude ver, com o valor do mundo lá fora, que ainda tinham alguns trocados de valor no mundo aqui dentro. Por reconhecer nos outros a humildade eu sabia reconhecer em mim sua existência, mas não consigo recordar de algum momento anterior àquele - e creio que não haverá posterior - em que eu pude sentir verdadeiramente o que era ser humilde, não por sê-lo, mas porque aquelas palavras conseguiram me fazer sentir o que eu senti.

Enquanto escrevo me pergunto por onde andará a Rai, que há muitos meses não vejo. E por onde andará a humildade que em mim ela exergou enquanto escrevo esse texto. Talvez seja ela como a felicidade, um estado de espírito e não condição de vida: não se é humilde, se está humilde; afinal declarar-se assim não anula a existência da humildade em momentos outros, seja no passado, seja no futuro - sem falsa modéstia, claro.

Por poucos seguntos - entre as palavras dela, um sorriso acanhado e a culpa de não saber o seu nome - eu não lhe disse que era exagero ou concordei a me gabar, e tudo o que eu consegui dizer foi que eu não sabia o que dizer além de muito obrigado. Nos olhos surgiram algumas lágrimas, fruto do coração acelerado pego de surpresa e sem qualquer pretensão. Hoje, tantos meses depois, veio em mim essa lembrança que, no fim das contas, é também uma lição.

Há muito passei da fase de não me importar com o que os outros pensam de mim. Não que eu me importe, mas antes eu sempre me importava. Hoje o às vezes acompanha a importância e vez ou outra eu não ligo mesmo se não curtiram meu bigode ou se incomodaram com meu macacão. O fato é que, independentemente da importância que você dá ou não para aquilo que dizem sobre você, existem algumas coisas que ninguém além dos outros vai poder dizer.

Tem quase um ano daquele encontro com a Raimunda. Relembrá-lo me fez enxergar o quanto, pelo menos até ali, eu segui meu caminho pela direção certa, independentemente dos desvios que fiz. Foi como voltar no tempo pra acalmar o coração e perceber o quanto aquilo que ela disse conseguiu fazer brotar um sorriso quando minh'alma estava tão entristecida. Aqueles poucos segundos que antecederam a culpa trouxeram também um cadinho de felicidade.

Então estávamos eu e um amigo conversando sobre onde tem sucesso aqueles que procuram a tal felicidade e, depois de visitar aquela lembrança - e apesar de corroborar com um de seus argumentos - eu percebi que a Rai não só tinha transformado o meu dia, como deixado pra mim uma lição pra vida toda: não adianta procurar, felicidade se encontra; pode vir de dentro de você, pode ser que outro alguém faça você sentir.

Ninguém pode ser feliz por ninguém. Mas sempre tem alguém que pode fazer você feliz. Não perca a humildade. Ser humilde é semear amor e colher felicidade.

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