terça-feira, 1 de setembro de 2015

João e o pé de algodão


- O algodoeiro cresceu?
- É, e cresceu muito.
- Esse algodoeiro do outro lado da cerca? – ela apontou para o pé de algodão que tinha os galhos iluminados pelo sol da manhã, tentando disfarçar o riso de chacota.
- É, esse aí mesmo.
- Sei. E você acordou agora jogado na grama, com essa roupa molhada?
- É.... Vai ver que eu estava desmaiando e delirei né? E às vezes chove aqui e não chove na cidade. Se eu desmaiei, vai saber se não peguei chuva. Mas, espera aí. Como é que você me encontrou aqui?
- O carro da mãe tem GPS, esqueceu? 
...

Era um novo ano, primeiro dia de um janeiro que todo o resto do mundo via apenas como véspera de uma quinta-feira com cara de domingo. Justamente naquele dia em que ninguém queria estar só, eu escolhi a solidão. Fugi da farra de champanhe e resolvi desbravar a estrada até a casa de campo da família, para me embebedar de estrelas e cheiro de mato naquele quintal que contava parte da minha infância. Anos tinham se passado desde a última vez que eu me permitira descalçar os pés e sentar na grama a admirar aqueles pontinhos brilhantes.

Naquele dia minha única companhia era o som do silêncio, cortado apenas pelo vento quando fazia as folhas daquele pé de algodão farfalharem no escuro. Reconheci não só pelos frutos iluminados pela luz da lua, mas porque eu lembrava dele. Era eu quem, quando criança, cuidava de aguar e arrancar os galhos secos todo final de semana que compartilhávamos da natureza em família. Mas era janeiro e em janeiro o algodoeiro não dava frutos, então talvez fosse um bom sinal para o ano que se iniciava.

Lembrei que dinheiro não era promessa de um novo ano, já que deixara a lentilha longe de qualquer um dos meus bolsos. Eu precisava de paz e pensei que, de repente, aquele fruto branco e felpudo pudesse ser a forma do universo me dizer que os dias vindouros poderiam não ser financeiramente agraciados, mas seriam vividos, um após o outro, em paz. Atravessei a cerca e resolvi guardar aquela lembrança da infância como um amuleto, ainda que não fosse tão crente de proteções materiais. Foi então que eu vi, quase que instantaneamente à retirada daquele chumaço de algodão, o algodoeiro crescer.

Sem entender nada, fiquei inerte olhando de cima a baixo daquela árvore que ia instalando seus galhos através das nuvens no céu escuro. Antes que concluísse o pensamento sobre o quanto deveria estar fora do meu estado normal, percebi que um dos galhos gigantes vinha em minha direção. Fechei os olhos, na esperança de que aquela morte anunciada fosse o suficiente para eu acordar daquele sonho, que não tinha como ser outra coisa. Quando os abri, dei de cara com aquele galho gigante a alguns metros de mim. Estava pendurado a alguns metros do meu rosto, preso a uma corda que tinha sua extremidade segura por outra pessoa. Estava confuso, analisando aquele momento como se em busca dos pré-requisitos que o distinguissem entre sonho e pesadelo, mas nunca realidade. Um pé de algodão gigante podia ser efeito do álcool, mas alguém cair do céu em cima de um galho gigante era para além da imaginação.

- Sai daí, rapaz. Não tá vendo que essa porra pesa?

Eu não conseguia me mover. Não bastasse o fato de nunca tê-lo visto na vida, eu estava vivendo uma situação bastante inusitada que não permitia pôr os pensamentos em ordem. Gaguejei alguma coisa que não consigo lembrar exatamente o que era, mas fui interrompido antes que pudesse concluir.

- Levanta daí e sai de perto que eu não vou aguentar muito tempo. Faz o que eu digo e pergunta depois.

Atravessei rapidamente a cerca e sentei na varanda, sem conseguir piscar enquanto via a corda ser largada e aquele galho seco despedaçar-se no chão exatamente onde eu me encontrava segundos antes. O estranho enrolou a corda e a prendeu atravessada no corpo enquanto seguia em minha direção. Não fosse aquele brilho nos olhos que eu percebi tão logo ele atravessou a cerca, o pânico teria feito minhas pernas criarem vontade própria e correrem sozinhas até o carro para ir embora dali. E não fosse aquele jeito engraçado de andar, nem o encanto dos olhos me faria sorrir tão sem graça quanto quando ele curvou-se para se apresentar.

- Desculpa chegar assim, de forma tão violenta, mas quando eu vi aquele galho vindo na sua direção eu não pude continuar descendo tão calmamente como estava. Eu me chamo Henrique, e você? – o nervosismo me impedia de responder sem gaguejar - Ah, não importa. Eu vou chamar você de garoto de algodão, mas preciso dizer que você me lembrou um Tsuru. Sabe o que é Tsuru? É um passarinho que fazem de papel no Japão e representa... Bom, representa algo muito bom e eu olhei pra você e vi algo muito bom – sorri – Foi por isso mesmo, o seu sorriso. Você sorri sem graça, sabe? Eu admiro quem sorri assim, porque é o que faz caras como você serem esse tipo de cara que verdadeiramente são.

Pesadelo não era porque eu não tinha medo. E não estava mais assustado. Aquilo era um sonho muito fantástico que eu estava tendo, porque minha cabeça deveria estar precisando muito focar no que não existia para lidar com o que existia. A realidade ali não era provável. Ninguém morava nas nuvens, muito menos tinha como escada para a terra um algodoeiro gigante. Não era só improvável, era impossível. Tão impossível quanto disfarçar minha cara de entendedor ruim que precisa mais que uma palavra completa para entender alguma coisa.

- Bom, eu estou vendo esse ar de incredulidade no seu rosto. E não posso fazer nada quanto a isso, na verdade. Porque só depois que eu for embora é que você vai saber se eu sou ou não real. Não se preocupe, você não vai precisar escolher acreditar ou não nisso, Tsuru. Você vai saber e pronto. Mas antes eu quero saber se essa noite vai ser um monólogo ou você vai parar de sorrir desse jeito e conversar comigo – nem eu percebi que ainda sorria sem graça e sem piscar os olhos fitando os dele que brilhavam.

- Meu nome é Luís, mas pode me chamar do jeito que quiser – consegui completar a frase sem gaguejar, o que me deixou aparentemente surpreso.
- Perdeu o medo né? – ele disse como se tivesse percebido minha surpresa.
- Não tive medo.
- Nem quando aquele galho enorme ia na sua direção?
- Ah, naquela hora...
- Ok, sem explicações, garoto de algodão. Hoje eu explico. Hoje você sente.
- Não estou entenden... Aliás, primeiro de tud...
- Eu sei que você tá confuso, mas tudo vai estar mais claro quando eu for embora. Então não perde tempo questionando nada, porque, como eu disse, depois que eu me for você vai saber o que ainda precisar saber.
- Ok.
- Ok?
- É, ué.
- Eu sabia que ia ser difícil.
- Eu...
- Qual o problema em dizer que não é bem assim que as coisas funcionam? – ele interrompeu.
- Eu vou entender alguma coisa em algum momento?
- Você conhece a tal história do João e o Pé de Feijão, né?
- Conheço. Agora é Henrique e o Pé de Algodão?
- É, boa tentativa. Foi sem graça, mas já é um começo.
- Será que um beliscão resolve? – eu perguntei enquanto apertava a pele do braço fortemente entre dois dedos, garantindo apenas uma feição de dor.
- Ah, Algodão Boy, eu não tenho muito tempo. Queria te ensinar a rir mais de si mesmo e brincar mais com a vida, mas não tenho horas suficientes pra isso. Então deixa eu ir direto ao ponto: eu quero que você reescreva essa história aí do João.
- Como é?
- É. O cara para quem eu contei quis ganhar dinheiro em cima das crianças e fez tudo errado.
- Como assim?
- Sabe o gigante? Pois é, sou eu.

Primeiro fiquei surpreso. Não consegui esboçar nenhuma reação até o riso se desprender e eu precisar me segurar na parede. Cogitei a possibilidade de algum primo ter batizado minha taça de champanhe com algum alucinógeno, porque... Não. Aquilo não estava acontecendo.

- Enquanto você ri, eu explico: foi tudo culpa da sala de espelhos que eu tenho em casa. Se você rir alto desse jeito eu não vou conseguir explicar. Desculpa fazer isso, mas eu não tenho muito tempo e preciso da sua ajuda – mesmo sendo pouco maior que eu, o tal Henrique conseguiu me dominar e me amarrou sentado junto de uma das colunas da varanda. Pegou um balde largado próximo à lavanderia, encheu e, ignorando minhas promessas de ter controle sobre o riso, encharcou-me por inteiro com água gelada – Agora você vai ficar quieto.
- Não abro mais a boca.
- Bom, eu não tenho tempo para as incongruências da história que foi compartilhada, e você ainda não é um escritor que receberá honras por reescrever uma história. Não que você não seja capaz, meu caro, não precisa dessa reação marrenta. Você precisa escrever uma história nova, e eu tenho uma história nova para você. É sobre um garoto que queria ser grande. Ele não queria crescer não, ele queria ser grande. Porque ele gostava de brincar, mas tinham uns garotos maiores que ele que faziam dele a brincadeira. E ele crescia e continuava pequeno. Parecia que, quanto maior ele desejava ficar, menor ia se tornando o espaço em que ele podia sentir-se livre: se não bastassem os grandes da rua, agora os grandes de casa insistiam que ele não era quem dizia ser, afinal não existe exceção para a regra que tudo na vida são escolhas.
E ele continuou:

O nome desse cara era João. E quando ele fez dezoito anos, eu resolvi presenteá-lo com a solidão. Ele já estava sozinho, afinal. Nosso primeiro encontro, assim como aconteceu com o autor daquela versão, foi na sala de espelhos. Foi lá que o João conseguiu se ver grande pela primeira vez. Foi quando eu finalmente pude me ver maior que todos aqueles que faziam pouco de mim. E sempre que eu tentava ir embora, era como se uma sombra de medo estivesse em meu encalço. Durante vários dias eu fiquei ali, só admirando meu reflexo gigante no espelho. Num desses dias apareceu um cara que não viu que aquele era apenas um reflexo enorme de um João que se encontrava contido num dos cantos da sala. Aproveitei sua distração pela quantidade de seus próprios reflexos, e ameacei esmaga-lo com o polegar, revelando o truque tão logo ele começou a chorar desesperado. E eu gostaria de ter uma boa lembrança de quem foi minha única companhia naqueles três anos que se passaram depois daquele dia. Porque, mesmo que eu fosse maior, só ele conseguia me fazer sair da frente daquele espelho sem que aquela sombra de medo me acompanhasse. E só assim eu conseguia voltar para casa.

No decorrer daqueles anos suas visitas começaram a ficar cada vez menos frequentes. E quanto menos visitas, mais tempo em frente ao espelho. E quando haviam quase seis meses de sua última partida, ele retornou para se despedir pela última vez. Tanto tempo me vendo gigante fez com que eu realmente me visse daquele tamanho. Mas ele sabia que era um reflexo e, mesmo sendo realmente menor que eu, depois de ter minhas lágrimas como comprovação da eficácia de suas palavras depreciativas, empurrou-me na direção daquele João gigante, originando uma enorme rachadura no espelho. Só ali eu percebi que, depois de três anos, eu nunca tinha perguntado seu nome, porque o choro que se seguiu foi a única forma que encontrei de substituir aquele grito seco que, sem nome, ficou preso na garganta. Só descobri quando vi a capa do livro que conta a história fantástica de um menino que sobe num pé de feijão até o céu e encontra um gigante, deixado para mim de forma anônima na porta da sala de espelhos.

Eu sabia que os verdadeiros João e Gigante eram uma pessoa só, mas fiquei muito tempo naquela sala de espelhos, lendo e relendo aquela história até perceber que não importava se maior ou menor que eu, minha fraqueza era justamente o fato de eu ser fraco. E que ele dera meu nome a si mesmo, porque o dito herói da história levou embora tudo o que era de valor para o outro, milhares de vezes maior. Acompanhei a superfície – que refletia quem eu queria ser – ser tomada pelas linhas de rachadura que iam se acumulando cada vez mais. Eu era um gigante desfigurado agora, mas ainda era um gigante, pelo menos para mim. E eu estava sozinho, não tinha porque querer ser maior ou me sentir menor que outro. E quando caiu o primeiro pedaço de vidro no chão eu deixei de contar os dias porque não queria ficar pensando que no dia seguinte poderia ir todo o restante abaixo.

Então eu não sei dizer exatamente quanto tempo faz entre aquele dia em que o primeiro pedaço foi ao chão e hoje, quando o chão da sala de espelhos se rompeu e tudo ficou suspenso num algodão gigante. Fazia esse tempo que eu não via o céu, que não escutava esse silêncio cortado hora ou outra pelo vento e me encantava com esse pisca-pisca das estrelas. Eu te vi ainda lá de cima e, tão logo cheguei aqui e vi o seu sorriso, lembrei de você: o garoto de algodão. É, eu lhe chamava assim. Eu não sei se você veio aqui outras vezes, mas antes de hoje foi justamente naquele mesmo dia em que o primeiro pedaço do espelho caiu que eu te vi pela última vez. Pela sua cara deve fazer bastante tempo a última vez que você veio aqui, mas eu deixei de crescer quando parei de contar os dias. É, essa é a verdadeira galinha dos ovos de ouro. Mas, não.

Quando o chão se rompeu minutos atrás abaixo dos meus pés, eu imaginei que aquela sensação de liberdade fosse fazer do meu reflexo a última coisa que eu gostaria de ver. Já recuperado do susto, mas distraído pela surpresa da sua presença logo hoje, acabei tropeçando num galho e só percebi aquele espelho quando quase transformei meu nariz num só. Eu sorri. Não precisava ser maior, mais forte, mais bonito. E eu lembrava dele. Estava do lado oposto àquele que me fazia gigante. Eu sorri sem graça, um sorriso que há muito eu não via. Era o primeiro em muito tempo e era o meu. E enquanto eu descia, antes que aquele galho viesse na sua direção, cheguei à conclusão de que uma história sobre João e o Pé de Algodão cairia bem como apresentação para o garoto que deitava na grama e chegou juntar mesada por seis meses para comprar o que um coleguinha da primeira série disse que eram feijões mágicos, mas descobriu-se sementes de algodão depois que brotaram do solo os primeiros vestígios de sucesso no plantio.

- Eu nem lembrava desse acontecimento.
- Depois de passar a cerca, eu te vi rindo sem graça. Fazia esse tempo que eu não via um sorriso sem graça desse, puro, sem nuvem preta ou branca. Tal qual eu sorrira para mim minutos antes. Eu lembrei que você deitava na grama, vez ou outra com um caderninho em mãos, escrevendo histórias sobre colônias de formigas gigantes que não faziam mal aos humanos porque eles eram bonitinhos. Nessa época eu ainda saía da sala de espelhos e era legal ler histórias tão absurdas quanto carregadas de mensagens sobre nunca deixar de ter esperança. Eu achava bonito isso, mas o fato de me sentir pequeno fazia com que, ao ter que escolher entre ver beleza e poder me sentir maior, eu preferia este último. Que dia é hoje?
- Hã?
- Que dia é hoje?
- Ah, é que você perguntou do nad... Primeiro de janeiro – respondi após uma ameaça com o balde em mãos.
- Eu preciso ir. Tem outras coisas que precisam ser feitas antes que você conclua a história. A propósito, você vai escrever a história não vai?
- Eu estou um pouco confuso, Henr... Joã... Qual seu nome afinal?
- Ah, desculpe encurtá-lo no começo. Não queria que você pirasse mais ainda ouvindo o nome de alguém que você tinha certeza que estava delirando ao encontrar. Eu sou João. João Henrique.
- João, Henrique e o Pé de Feijão Que Virou Algodão.
- Horrível. João e o Pé de Algodão. É plágio?
- Acredito que sim. João e Henrique, o Encontro dos Gigantes.
- Desculpa, mas agora não vai dar pra gente discutir título. Você vai começar hoje, assim que eu for embora. Não apresse nem atrase. Faça no seu tempo, mas comece hoje. Não fosse você eu teria receio em dizer isso, mas sinta-se à vontade para transformar minhas poucas palavras na quantidade de páginas que quiser. Eu preciso ir agora porque daqui pra frente a história é sua. Confio na sua criatividade para não temer um futuro escrito pelas suas mãos, mas quem sabe não nos encontraremos por aí para dar um ar de realidade para essa história fantástica?
- Mas você vai pra onde?
- Recomeçar.
- Recomeçar onde?
- Ah, todo mundo tem o seu lugar para recomeçar. Aqui não foi o seu? Segue me conselho: começa hoje. Quem sabe meu recomeço não seja exatamente o lugar que sua imaginação criar?
- Sei. E eu vou começar como amarrado desse jeito?
- Já vou desamarrar. Antes preciso fazer uma coisa.
- Que coisa? – nem me dei ao trabalho de espernear. Quando o vi enchendo o balde novamente já sabia que mais um banho viria pela frente e nada poderia impedir.
- Esse foi para acordar a mente. Deixa eu te desamarrar. Olha, não começa uma busca por mim que você não vai chegar a lugar nenhum. Começa uma busca pela história. Se você quiser realmente contar essa história, a minha história, você vai conseguir me encontrar.
- Eu posso ter toda essa certeza? – ele virou as costas e seguiu rumo ao portão que dava acesso ao interior da cerca, me fazendo virar-lhe as costas quando desisti de esperar uma resposta.
- Você vai saber o que precisar saber. Não é exatamente o que você quiser saber. Não é só o fato de “querer não ser poder”. É o fato de que às vezes a gente procura resposta para perguntas que nós não fizemos. E já basta o tanto de certeza que a gente precisa ter na vida para perder tempo solucionando problemas que não são nossos. Quando você encontrar as respostas para aquelas que são suas perguntas, você vai saber.

...

- E porque você queria tanto ficar sozinho?
- Eu achei que eu quisesse, sabe? Mas, na realidade, eu precisava.
- Para ver um pé de algodão gigante?
- É, talvez tenha sido isso mesmo – olhou para cima, cegando a vista com a luz do sol, mas sorrindo sem graça porque sorrir sem graça era uma das coisas que o faziam ser o tipo de cara que verdadeiramente era.

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